Os chanceleres Lavrov e Vieira, da Rússia e do BrasilOs chanceleres Lavrov e Vieira, da Rússia e do Brasil: ao lado das autocracias

Longe das democracias

O Brasil fez uma opção equivocada por uma diplomacia presidencial que acolhe o autoritarismo
23.02.24

O Brasil trilha um caminho perigoso nas relações internacionais, longe das democracias e perto de autocracias, ditaduras e regimes autoritários. Um movimento que aos poucos deslegitima nosso país como interlocutor confiável dentro do cenário externo e retira o tradicional verniz conciliador e moderado de nossa política internacional.

Existe atualmente uma movimentação sensível das placas de estabilidade do concerto internacional, as mais sérias desde o estabelecimento da atual correlação de forças no pós-guerra. Estamos falando de movimento crescente e sólido de nações autoritárias, teocráticas e aquelas que fizeram a opção por governos autocráticos no sentido de desenhar uma nova ordem internacional submetida a uma visão de mundo que não dialoga com a democracia.

O crescimento dos conflitos tem relação direta com essa realidade, tanto na Ucrânia, quanto em Israel e nas nações africanas que sofrem golpes de Estado sucessivos. Por trás dessas ações estão Rússia e Irã sob o olhar complacente dos chineses que vêm atingindo seu objetivo de subserviência de parceiros comerciais por meio de uma estratégia de dependência econômica e política.

Esse grupo vem tomando forma e acumulando musculatura ao longo do tempo, criando novos fóruns internacionais, como o Brics e também linhas próprias de financiamento que ultrapassam os limites de suas fronteiras, como o Novo Banco de Desenvolvimento, ou Banco dos Brics. Não surpreende que os novos sócios nessa empreitada passem ao largo de qualquer traço democrático: Arábia Saudita, Irã, Egito, Etiópia e Emirados Árabes Unidos.

Ao mesmo tempo, países considerados democracias liberais iniciaram flertes com a autocracia, como Hungria, Índia e El Salvador. Hoje, 42 países estão enfrentando processos de autocratização, o que significa desmontar pilares cruciais da democracia, como alternância de poder, liberdades de expressão e imprensa e pleitos competitivos. O número de nações dirigidas por ditaduras se tornou maior que o número de democracias plenas pela primeira vez desde 1995. As democracias voltaram a números que datam de 1986, apontou recentemente o relatório do instituto sueco V-Dem.

Isso significa que o bloco liderado por nações como China, Rússia e Irã vem ganhando tração. Somente nos últimos anos houve deposição dos governos do Mali, Guiné, Sudão, Burkina Faso, Chade, Níger e Gabão. Se as digitais russas não se encontram em todos, pelo menos na maioria são percebidas. Se hoje cerca de 72% da população mundial vive sob o jugo de ditaduras, autocracias ou regimes autoritários, a situação na África é ainda mais preocupante e vem piorando sensivelmente com apoio do Kremlin.

Ainda na África, a China preferiu uma abordagem mais leve, por meio da implementação de parcerias econômicas que se tornaram dependência política por meio da Nova Rota da Seda. Ao se tornar a primeira opção de muitos países de média e baixa renda para empréstimos, a China agora é o maior credor internacional do mundo, algo que carrega um custo de subserviência política embutido. O resultado foi que, na última década, países como Quênia, Gana e Nigéria, entre outros na África, passaram a adotar posições favoráveis ao governo de Pequim nos fóruns internacionais.

A estratégia da China, entretanto, está muito da além da África, atingindo várias nações seduzidas pelo investimento chinês. A Argentina cedeu parte de seu território na Patagônia para a instalação de uma estação militar chinesa. No Paquistão um novo corredor está sendo construído com foco na interligação da economia do país com a China. A Grécia vendeu 67% do seu maior e mais estratégico porto para Pequim, que agora controla um dos mais importantes hubs do comércio marítimo europeu. No Brasil, a chinesa State Grid arrematou o principal lote no maior leilão de energia da história do Brasil.

Porém, nem tudo são flores na rota desenhada por Pequim. Em Gana, a população pediu na Justiça o fim da exploração da bauxita pelos chineses. O Quênia já acumula mais de 2 bilhões de dólares de dívida com Pequim. Na Malásia, o ex-premiê desviou mais de 800 milhões de dólares, deixando uma dívida de 4,5 bilhões de dólares do seu país com a China. Na América Latina, o investimento direto estrangeiro (IDE) chinês caiu de 14,2 bilhões de dólares por ano entre 2010 e 2019 para uma média de 7,7 bilhões de dólares de 2020 a 2021 e depois para 6,4 bilhões de dólares em 2022. A ressaca econômica proporcionada pela festa dos investimentos chineses tem sido duríssima para muitas nações.

Está muito claro que estamos diante de um choque entre as democracias ocidentais em contraposição com um modelo autoritário. O movimento de colisão já mostrou sinais na Ucrânia, Israel, diversos países africanos e cria raízes na América Latina e outras nações. O Brasil, seja pela via da direita ou da esquerda, se mostra simpático aos autocratas. Pela direita, se alinha a Bukele em El Salvador e Orbán na Hungria. Pela esquerda, está ao lado de Maduro na Venezuela, do Irã dos aiatolás, do comunismo cubano e da repressão de Ortega na Nicarágua. Ambos preferiram entregar a Ucrânia à própria sorte ao optar pela companhia da Rússia autocrata de Putin.

Ao se alinhar com nações que contrariam nossos princípios, o Brasil, que infelizmente tem transitado entre o populismo e autocracia, fez uma opção equivocada por uma diplomacia presidencial que acolhe o autoritarismo, ao mesmo tempo contraria os princípios democráticos que deveríamos zelar. Ao trilhar esse caminho, nosso país perde relevância, importância e confiança no xadrez global.

 

Márcio Coimbra é cientista político, presidente do Instituto Monitor da Democracia e conselheiro da Associação Brasileira de Relações Institucionais e Governamentais (Abrig). Foi diretor da Apex-Brasil e do Instituto Legislativo Brasileiro

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  1. Não concordo apenas com o último parágrafo: que princípios? O Brasil, historicamente, salta do colo de caudilhos para ditadores, com breves sopros de democracia de fachada. O amor pela democracia liberal não corre nas veias deste país e seu povo ainda não amadureceu para clamá-la.

  2. Quando vão parar de chamar o Brasil de democracia? Deu, né? Só para inglês ver. Olha a matéria da treta do aeroporto na Itália, cassação do Dallagnol,, perseguição a toda oposição.

  3. Expõe de forma clara a preocupante situação mundial por que vivemos, agravada também pela falta de lideranças decentes nas democracias ocidentais.

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