Agência Brasília via FlickrEscola infantil em Brasília: enormes carências na formação de capital humano

Por que o Brasil ainda não é um país desenvolvido? Segunda parte

Além da inépcia de todas as nossas elites, ideias erradas, não ausência de capital, explicam o atraso do Brasil na atualidade
23.02.24

Raymundo Faoro, em sua tese de 1958 sobre os Donos do Poder, analisou o lento desenvolvimento do patrimonialismo ibérico até as formas modernas de corporativismo dos “estamentos burocráticos” que dominam o Estado e as relações contratuais nesses países europeus. O patrimonialismo veio sendo transformado ao longo das novas formas de organização política nos países latino-americanos, sem jamais ter sido extirpado ou reduzido nas modernas repúblicas formalmente democráticas.

Acresce a essas características do centralismo ibérico o fato histórico relevante da contrarreforma, um movimento regressista, obscurantista, obstrutor do progresso científico, ou seja, reacionário no plano da liberdade de ideias e no de sua transmissão. A ausência completa de uma revolução científica e, mais importante ainda, a completa omissão dessas sociedades na questão da alfabetização de massa impactou profundamente sua trajetória posterior, comparativamente às nações da tradição protestante, nas quais a leitura individual da Bíblia e a escolarização generalizada conduziram a patamares mais elevados de educação formal, que é a base da produtividade do capital humano, o grande diferencial das sociedades modernas.

Em 1900, no momento em que o Brasil consolidava seu regime republicano, a taxa de matrículas na escola primária era de apenas 258 estudantes para cada 10 mil habitantes, vis-à-vis as taxas de 1.969 estudantes para os Estados Unidos e de 1.576 para a Alemanha. Para ser mais preciso, o Brasil não conseguiu alcançar um nível de cobertura quantitativa em matéria de ensino primário comparável ao dos Estados Unidos no começo do século 19 antes dos anos 1970, ou seja, cerca de 150 anos depois. Essa realidade revela o tamanho da distância, puramente quantitativa, que separa o Brasil das nações educacionalmente mais avançadas. No plano qualitativo, os resultados deploráveis obtidos por estudantes brasileiros no âmbito de exames internacionais quanto a desempenho no ensino médio – por exemplo, o PISA da OCDE – confirmam as enormes carências relativas à formação de capital humano no Brasil. Trata-se de uma insuficiência estrutural construída em séculos de descaso e desprezo com a educação.

Dispensável dizer que, com base na especialização em um número restrito de produtos primários e no sistema de trabalho escravo, com um mínimo de cultura letrada, inexistência de universidades ou de simples escolas de formação básica, e um sólido monopólio da Coroa sobre todas as formas de expressão política e intelectual, ademais da preservação do regime mercantilista jamais eliminado completamente, o Brasil não poderia sequer sonhar em acompanhar os primeiros rudimentos de revolução industrial que tiveram lugar na Nova Inglaterra, por exemplo, ou em abrir espaço a companhias privadas dedicadas a pequenas indústrias, estaleiros, estabelecimentos comerciais e bancários capazes de impulsionar uma economia de mercado que sempre permaneceu funcionando em bases extremamente precárias.

Os progressos materiais foram muito lentos no período monárquico. O início do período republicano trouxe algum alento nas políticas de proteção à indústria nacional, mas em caráter bastante volátil, pois que também dependente da capacidade de importação, que sempre foi dada, até meados do século 20, pela produção rudimentar de algumas poucas commodities de exportação. A partir da depressão dos anos 1930, o Brasil envereda por um esforço de industrialização bem-sucedido, com taxas sustentadas de crescimento que se manterão acima da média mundial, com picos de alto crescimento até as crises do petróleo dos anos 1970, quando a dependência do combustível fóssil se situava acima de 80% do consumo. Nacionalismo, protecionismo, mercantilismo, dirigismo estatal foram os traços básicos da industrialização desde então.

A educação de massa permaneceu em níveis deploráveis, ou até conheceu retrocessos simultaneamente às grandes ondas migratórias, de urbanização e de democratização social registradas a partir dos anos 1960, com respeito à razoável escola pública construída nas décadas de 1930 a 1950. A falência progressiva da educação pública de massa traduz uma inépcia fundamental das elites brasileiras, todas elas, com destaque para o empresariado industrial, cuja pujança nacional foi alcançada em notável promiscuidade com o Estado e a tecnocracia pública. As mesmas elites, inclusive as oriundas do setor sindical operário, que ascenderam ao poder já no século 21, preservaram as mesmas deformações criadas e alimentadas durante todo o esforço de industrialização ao longo do século 20, quais sejam: o protecionismo, o dirigismo, o mercantilismo, o nacionalismo, o isolamento das cadeias mundiais de valor, em uma palavra, o stalinismo industrial, que já tinha sido a característica do regime militar.

Ao lado dessas características estruturais e institucionais, cabe referir também a extrema volatilidade das políticas macroeconômicas e setoriais em determinadas fases. O Brasil é, provavelmente, o único país do mundo a ter conhecido oito sucessivas moedas no curso de três gerações, sendo seis diferentes moedas num período inferior a dez anos (os anos de hiperinflação de meados dos anos 1980 à primeira metade da década seguinte). A instabilidade macroeconômica se caracterizou igualmente por crises fiscais, volatilidade cambial, manipulação dos juros de referência e intenso uso dos bancos públicos, ao lado de atrasos indesculpáveis em importantes reformas estruturais. No plano da competição, cabe registrar a existência de monopólios estatais e de carteis do setor privado, ou seja, alta concentração em alguns setores e ganhos monopólicos em detrimento da renda da população.

No plano da governança, o Estado brasileiro transformou-se num ogro famélico que suga, captura, extrai recursos, renda e riqueza produzidos no setor privado em favor dos mandarins corporativos exibindo por vezes comportamentos aristocráticos típicos do Ancien Regime, como é o caso do Judiciário. As disparidades de rendimentos do trabalho entre o setor público e o setor privado são inaceitáveis do ponto de vista de um sistema democrático baseado na transparência e na meritocracia. A baixa qualidade do capital humano compromete gravemente um processo de ganhos de produtividade que possam ser refletidos numa maior competitividade externa da economia brasileira, pois o grau de inovação é pífio para os padrões existentes em países de capacitação industrial similar ou comparável. Finalmente, o Brasil é o mais fechado país do G20, com base num coeficiente de abertura externa inferior à metade da média mundial.

Por que o Brasil ainda não é um país desenvolvido? Uma resposta simples seria representada pela inépcia das elites, todas as elites, as tradicionais, as “modernas”, as supostamente representativas dos trabalhadores e dos setores populares, os empresários, os banqueiros, os acadêmicos, os políticos, os altos funcionários públicos. Uma resposta ainda mais simples poderia ser encontrada numa realidade bem prosaica: ideias erradas, não ausência de capital, explicam o atraso do Brasil na atualidade.

 

Paulo Roberto de Almeida é diplomata e professor

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  1. E pensar que a cada época de eleição os políticos sobem nos palanques para falar do investimento em educação que irão fazer, caso eleitos. Se elegem, o povão acredita, e não se preocupa em cobrar os resultados prometidos pelos seus eleitos.

  2. Excelente! Ideias atrasadas,excesso de corrupção e muita burocracia ...o atraso, pobreza e desigualdade são os frutos disso...

  3. Texto magnífico, as duas partes. Deveria ser estudado e debatido em sala de aula se houvesse professor de História bem capacitado.

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