Reprodução/FacebookVera Hill, a torcedora do Nottingham Forest homenageada pela torcida do time

O time da minha aldeia

Não é falta de caráter torcer para um clube grande de outro estado ou da Europa, mas é óbvio que algo já se perdeu quando isso acontece
23.02.24

Hélio dos Anjos desabafou no início da temporada. “Quero que o Flamengo se dane. Não sou flamenguista, não trabalho no Flamengo”, disse o treinador do Paysandu ao lamentar a preferência para o gigante carioca no Pará. Seu time não pôde jogar no Mangueirão, para preservar o gramado para a partida entre os flamenguistas e o Sampaio Corrêa pelo Campeonato Carioca, fora do Rio de Janeiro, no último dia 31.

Em seu desabafo, o treinador falou em “preservar a identidade dos clubes locais” e lembrou o episódio em que criticou os torcedores goianos que torciam pelo Flamengo, em 2009. “Tenho ódio desses flamenguistas do interior de Goiás. Eles são uma vergonha, não têm identidade, nem caráter para honrar a própria terra. Pelo contrário, vestem a camisa do Flamengo, ou de qualquer outra grande equipe de fora, e vão ao estádio torcer contra um time do seu estado”, disse Hélio na ocasião.

O debate volta à tona todo início de ano, durante os campeonatos regionais, e, em 2024, quando os grandes clubes de Rio de Janeiro e São Paulo disputam seus jogos em outras regiões para grandes públicos, faz ainda mais sentido. Não vou dizer que é falta de caráter torcer para um clube grande de outro estado — é compreensível, inclusive, que os mais jovens se inclinem a acompanhar o estrelado futebol europeu —, mas é óbvio que algo já se perdeu quando isso acontece.

“O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia. Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia. Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia”, diz o célebre poema de Alberto Caeiro (Fernando Pessoa). Que segue: “O Tejo desce de Espanha. E o Tejo entra no mar em Portugal. Toda a gente sabe isso. Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia e para onde ele vai e donde ele vem. E por isso, porque pertence a menos gente, é mais livre e maior o rio da minha aldeia.”

Não é o torcedor que escolhe o clube, mas o contrário. É por isso que os pais mais interessados em futebol catequizam os filhos com suas cores dentro de casa. Mas nem isso é garantia de sucesso. Sem uma comunidade que apoie o pai nesse convencimento, sem a identidade reclamada por Hélio dos Anjos ou um sentimento de pertencimento, o trabalho fica ainda mais difícil. É melhor optar por quem está ganhando ou, de tão grande, vai ganhar em algum momento, ainda que esteja em má fase.

Os maiores clubes de futebol se tornaram tão grandes no Brasil que invadiram, pela televisão, os bairros mais distantes das regiões Norte e Nordeste, em especial. Mas já estão sendo ultrapassados até por clubes médios da Europa, pelo mesmo motivo. É um processo progressivo que parece não ter volta, e que torna cada vez mais especial a ligação única entre um torcedor e seu time local.

Viralizou nesta semana um vídeo que mostra Vera Hill (foto), torcedora de 92 anos do Nottingham Forest, que “desistiu do seu ingresso de temporada quando começou a perder a visão há 15 anos”. Ela aparece se emocionando na arquibancada do City Ground, o estádio da equipe. O clube da Inglaterra a convidou para ouvir a torcida entoar mais uma vez sua versão de Mull of Kintyre, música dos Wings transformada em hino pelos torcedores.

Bicampeão europeu na virada da década de 1970 para 1980, o Nottingham Forest ganhou seus últimos títulos  no início da década de 1990. Não que isso faça diferença para Vera.

É como diria Alberto Caeiro: “Pelo Tejo vai-se para o Mundo. Para além do Tejo há a América e a fortuna daqueles que a encontram. Ninguém nunca pensou no que há para além do rio da minha aldeia. O rio da minha aldeia não faz pensar em nada. Quem está ao pé dele está só ao pé dele”.

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  1. Hélio dos Anjos está correto. Pessoa está ainda mais. A ligação com o que está próximo, com o que é de onde se pertence e se confunde com o que somos é muito mais especial do que a alegria de festejar título de um time que está longe, não fala com o nosso sotaque, não come da nossa comida nem ouve a nossa música. E isso falo sendo torcedor do Vasco, um clube de dimensão nacional e com enorme torcida por todo o Brasil (que é um patrimônio inestimável).

  2. Gostei! No livro "O novo pai", de Malcolm Montgomery, ele lamenta que, ao se separar, o filho dele "pegou em outras mãos, vestiu outra camisa e torceu para outro time", ao contrário do que ocorreu com o meu filho, que, na dúvida, "vestiu a minha camisa e torceu para o meu time, porque eu jamais lhe largara das mãos", no livro autobiográfico "Como criei filhos fortes e felizes", em e-book na Amazon e em papel no Clube de Autores; recomendo!

    1. Obrigado pela reflexão e dica literária Albino. Público qualificado é outro nível. Abraço

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