ReproduçãoPintura de Debret mostra engenho de açúcar no Nordeste

Por que o Brasil ainda não é um país desenvolvido?

Mais importante do que a simples disponibilidade de recursos naturais é a conformação geral das instituições sociais
09.02.24

Nove décimos da História foram feitos de muitos sofrimentos para a maioria da humanidade. Desnutrição, inanição, morte precoce pela fragilidade alimentar, pela intervenção de fatores naturais ou daqueles criados pelas mãos dos homens. Invasões, guerras, dominação, escravidão, quando não matanças e apropriação das riquezas de outras tribos. Durante milhares de anos, a escravidão foi um fato corriqueiro na vida dos povos, seja como escravocratas, seja como objetos da servidão forçada, pela dominação, pelas dívidas, pela submissão sob qualquer pretexto. Sobrevieram melhorias na agricultura, a revolução tecnológica mais importante na trajetória das sociedades humanas, antes da segunda, milhares de anos depois: a Revolução Industrial, no século 18. O crescimento agrícola e a domesticação de espécies vegetais e animais representaram a superação da insegurança alimentar, que sempre pairou sobre todos.

Historiadores retraçaram o destino das sociedades humanas e a transmissão das novas técnicas e variedades vegetais e animais ao longo do espaço euroasiático do hemisfério setentrional, liberto das barreiras que se interporiam a essa disseminação no eixo Norte-Sul, na faixa tropical. Tais barreiras estão na origem das divergências entre o norte temperado e as latitudes tropicais, uma das razões do lento desenvolvimento, ou da preservação do atraso, no hemisfério meridional (exceto Austrália e Nova Zelândia, situadas na zona temperada, e que se beneficiaram da colonização britânica).

Dez mil de anos se passaram entre a primeira, a agrícola, e a segunda revolução econômica da espécie humana, a industrial. A do século 18, na Europa ocidental, foi a primeira de um ciclo cada vez mais rápido de mudanças nos padrões industriais, criando a grande divergência entre as nações mais ricas e as outras, que permaneceram pobres. No intervalo, a humanidade conheceu progressos econômicos muito lentos, com avanços tecnológicos sendo neutralizados pela armadilha malthusiana, a geométrica expansão das populações exercendo uma pressão constante sobre o aumento aritmético da oferta alimentar.

Não obstante, descobertas científicas – escrita, cálculo, observação da natureza, nascimento da própria história – e alguns avanços éticos – religiões não sacrificiais, filosofia moral, noção de bem público, consciência da unidade fundamental da raça humana – fizeram com que algumas sociedades conhecessem progressos materiais, culturais e artísticos que ainda hoje se colocam como realizações admiráveis do espírito humano, ao lado de aspectos menos edificantes, como matanças em massa e a destruição de civilizações inteiras.

Até o século 18, todas os povos e civilizações possuíam uma base agrícola bastante frágil, com desequilíbrios ocasionais que provocavam surtos de fome e a eliminação de “excedentes populacionais”, de acordo com concepções malthusianas que, felizmente, deixaram de se manifestar no momento mesmo de sua formulação. A partir de um lento acúmulo de inovações produtivas, ao longo de vários séculos, mas também de mudanças no plano das ideias, a Europa ocidental escapou da armadilha malthusiana para enveredar por um caminho de crescimento sustentado, a taxas mais elevadas do que aquelas conhecidas durante séculos, com progressos sociais.

A China vem à mente como exemplo de potencialização das oportunidades de criação de riqueza e prosperidade depois de uma longa estagnação. Ela sempre foi muito mais rica do que qualquer outro império ou economia nacional. No entanto, o país não conseguiu dar o salto produtivo que o colocasse na vanguarda da moderna sociedade industrial e de serviços, como ocorreu a partir da Revolução Industrial do século 18. Ela falhou nessa primeira, esteve ausente da segunda e na terceira estava dominada pelo maoísmo demencial do Grande Salto para a Frente e da Revolução Cultural. Deng Xiaoping retirou-a dessa modorra e lançou-a no frenesi da grande interdependência global, passando a receber investimentos e abrindo-se ao comércio.

Com base nesse exemplo, como responder à questão título do artigo: por que o Brasil ainda não é um país desenvolvido? Ou dito de outra forma: por que o Brasil ainda é um país atrasado? Qualquer que sejam as interpretações que se possam fazer sobre as trajetórias das sociedades avançadas e das nações atrasadas, uma coisa fica clara no desenvolvimento histórico das sociedades do Novo Mundo, incorporadas à economia europeia e registrando uma grande divergência entre sua parte setentrional, basicamente anglo-saxã, e sua vertente latina, ou ibero-americana. É inegável que, partindo de processos colonizadores relativamente contemporâneos, a partir do século 16, a parte norte-americana deslanchou para uma trajetória histórica de precoce progresso material, e institucional, comparado ao mais lento desenvolvimento das nações latinas.

Historiadores econômicos, baseados em dados sobre produção e exportação de riquezas naturais, formulam a hipótese de que os novos espaços de ocupação ibérica nas Américas eram bem mais ricos do que as pequenas colônias agrícolas da América do Norte, criadas ou organizadas por uma vaga de imigrantes pobres, refugiados religiosos ou emigrados econômicos das frias paragens da Europa setentrional. Chega-se mesmo a enfatizar a imensa “renda per capita” do Haiti, o maior exportador de açúcar do mundo numa certa fase de sua colonização francesa, como se a renda monetária derivada dessas exportações constituísse evidência de progresso material ou de prosperidade na parte ocidental da ilha conhecida como Hispaniola. O próprio Nordeste brasileiro, no auge da produção açucareira, podia de fato exibir um alto nível de renda, mas, como no Haiti, a riqueza circulava entre proprietários e comerciantes, e se apoiava sobre uma economia escravista de extrema rotatividade no tocante ao “capital” humano.

Mais importante do que a simples disponibilidade de recursos naturais, ou a mobilização de fatores produtivos para a “extração” de valor de colônias de ocupação, é a conformação geral das instituições sociais e a capacidade de que podem dispor os agentes primários de criação de riqueza de se proteger contra a desapropriação dessa mesma riqueza pelos atores políticos atuando a partir de um Estado organizado.

Se pudéssemos resumir as diferenças fundamentais entre as sociedades ibéricas e as sociedades anglo-saxãs, elas seriam estas: tudo o que não fosse expressamente concedido, permitido, alocado, atribuído pelo poder soberano – sob a forma de alvarás régios, mandato ou concessão especial – estava ipso facto proibido à iniciativa privada, devendo portanto aguardar que a atribuição régia ou burocrática se fizesse pelo Estado centralizado; do outro lado, tudo o que não fosse expressamente proibido por alguma legislação emitida legalmente poderia ser objeto da iniciativa individual ou coletiva por parte de particulares, sem a necessidade de um ato concessivo por parte do soberano. As primeiras, obviamente, foram as nações de tradição ibérica, as segundas, as anglo-saxãs.

A outra diferença é que o povoamento em bases familiares na América do Norte, com famílias camponesas trazendo avanços tecnológicos já adquiridos ex-ante, não tinham correspondência nas colônias de exploração de recursos locais, em bases senhoriais, apoiadas na servidão das populações originais ou na escravatura africana, com reflexos nos modos de organização política e social em cada lado. A colonização anglo-saxã se faz a partir de instituições similares às que existiam nas comunidades de origem, com uma democracia de base simbolizada na eleição local dos xerifes de aldeia e dos juízes de condado, ao passo que no mundo ibero-americano a representação política sempre obedeceu aos ritos do mandonismo dos senhores de terras, secundados por oficiais da metrópole encarregados de um sistema amplamente disseminado de extração de recursos em favor da metrópole colonial. Esta é a base histórica da diferenciação. Veremos a continuidade desse processo no próximo artigo.

 

Paulo Roberto de Almeida é diplomata e professor

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  1. Ótimo artigo! Faltou mencionar que, nos Estados Unidos, havia uma clara distinção entre Norte e Sul, o primeiro mais rico, menos escravista e mais industrializado que o segundo. Isso ficou nítido na Guerra Civil. Como o Brasil, o PIB do sul dos Estados Unidos foi feito com uma enorme massa de escravos, em benefício dos poucos senhores e suas instituições. Nós na América Latina ainda fomos brindados com o Tratado de Tordesilhas e, no Brasil, com a distribuição de terras antes de conhecê-las.

  2. Excelente texto, ansiosamente aguardo o segundo, pois, infelizmente, acho difícil, senão impossível incutir na cabeça do povo, que é quem elege esses políticos individualistas e desprovidos de qualquer ética, honestidade e empatia, para que este país possa ser um dia uma nação verdadeiramente próspera e democrática.

  3. Excelente. Ansioso pela 2ª parte. Essa diferença entre a determinação do permitido e do proibido entre os colonizadores ibéricos e a Inglaterra é muito interessante e indica bem a maior capacidade de inovação e iniciativa dos colonizados pela segunda.

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