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Banqueiros e militantes

Situação idílica americana em relação ao dólar, ao contrário do que se prega por aqui, não é exatamente confortável
09.02.24

“Os mercados podem continuar irracionais por mais tempo do que eu ou você podemos continuar solventes” – John Maynard Keynes.

Em julho de 2023 fiz por aqui, nesta mesma coluna, uma pequena provocação acerca da dívida americana. O título “você está pronto para pagar a dívida americana?”, já revela o tom e boa parte do que você precisa entender.

Desde que Lord Keynes perdeu em Bretton Woods e os EUA ganharam, o dólar se tornou de fato e de direito a moeda global. Com isto, a maior economia do planeta passou a gozar de um “privilégio exorbitante”, como definiu o ministro das finanças da França, Valery Giscard.

Em suma, como disse Giscard, “custa apenas alguns centavos de dólar para os Estados Unidos imprimir uma nota de 100 dólares. Mas muitas horas de trabalho para que o resto do mundo tenha acesso a ela.”

Por décadas os Estados Unidos têm feito uso deste privilégio, mantendo-se em uma inflação relativamente estável e baixa e garantindo que sua população não precise fazer o sacrifício de poupar.

Ao contrário, países como o Brasil fazem de bom grado o sacrifício de economizar para alocar recursos nos títulos americanos. Por aqui, essa atitude gera bons frutos aos governos, mesmo à esquerda, que comemoram com êxito o fato de acumularem dólares em reservas internacionais, ainda que estes dólares custem 11% ao ano para nós e nos rendam 3% em troca.

Mas essa situação idílica americana, ao contrário do que se prega por aqui, não é exatamente confortável. E é sobre isso que precisamos falar.

Retomei este tema após uma fala bastante específica. André Esteves, o banqueiro mais poderoso do país, reuniu CEOs e inúmeros figurões da política e economia do continente para realizar uma conferência.

Dentre as falas, além dos elogios ao ministro Fernando Haddad (algo normal para quem é dono de um banco com 1,6 trilhão de reais sob custódia), Esteves fez coro a um argumento bastante comum no Brasil: por que os EUA podem ter uma dívida de 120% do PIB e no Brasil, um déficit de 2% do PIB é o fim do mundo?

Esse assunto já rendeu um belo debate na Folha de S. Paulo, envolvendo colunistas com Samuel Pessoa e Alexandre Schwartsman. Naquele caso, a discussão utilizava o Japão como exemplo

O ano era 2015 e a professora Leda Paulani se utilizava do exemplo japonês para minimizar o déficit da época (convém lembrar que vivíamos a grande depressão brasileira). Samuel foi direto ao ponto Nós não somos japoneses. Enquanto Alex manteve o tom ácido que o tornam uma das figuras essenciais para acompanhar a economia brasileira. Sua coluna chamava Leda no país das maravilhas”.

Ambas as colunas estão linkadas acima por razões evidentes. Longe de mim lhe explicar o que pessoas mais capacitadas do que eu já fizeram há alguns anos. Me contento aqui com a tarefa de editoria e com a boa memória, resumindo pra você a discussão.

Adiciono também uma fala de outro gigante da economia brasileira: Gustavo Franco.

Gustavo menciona em certo ponto que “olhamos errado” alguns números. E a relação dívida/PIB está entre eles.

Do economês, PIB é a soma das riquezas produzidas ao longo de um ano. Nem toda riqueza existente, portanto, está no PIB. Ao contrário, o PIB é o produto da riqueza existente.

Em países com boa segurança jurídica (o que não chega a ser o caso do Brasil, como finge não saber o ministro Barroso), a riqueza total é da ordem de alguns múltiplos do PIB.

De fato, ela pode chegar a 8,3 vezes o PIB em Hong Kong, ou 5,6 na Suíça, 5,4 nos EUA. No Brasil, a riqueza total equivale a cerca de 1,92 vezes o PIB. Estamos em 82⁰ na lista, atrás do México (2,12), por exemplo.

E este fator de riqueza acumulada é de suma importância, afinal, PIB é fluxo e dívida é estoque. A relação entre nossa dívida/estoque de riqueza, portanto, está na casa de 76/1.9 ou 40%. Nos EUA, que devem 123% do PIB, a dívida pública equivale a 22,7% da riqueza total.

Em suma: nossa dívida é quase o dobro da dívida americana. Isto ainda desconsiderando que ao contrário do Brasil, os EUA possuem acesso de forma barata a toda poupança global disposta a lhes financiar.

Mesmo assim, a situação americana não é confortável. Na última semana, Jerome Powell, o presidente do Banco Central americano, chegou a declarar que vê a dívida americana caminhando para um ponto insustentável.

Só para lembrar, quando escrevi sobre o tema em julho de 2023, a dívida americana era de US$32.6 trilhões. Em janeiro de 2024, ela já havia chegado a US$34.4 trilhões.

E não apenas Powell como James Dimon, o “André Esteves dos EUA”, todo poderoso CEO do JP Morgan, também tem insistido na insustentabilidade da dívida. Na prática, este foi o tema que marcou o Fórum econômico mundial em Davos no último mês de janeiro.

Há quem diga inclusive que este fator poderia ser decisivo para a eleição de Donald Trump contra Joe Biden.

O descontrole da dívida americana, claro, deixa o país vulnerável aos seus credores (como a China), e testa a paciência do resto do mundo.

No Brasil, o descontrole fiscal está menor, em termos de PIB (fluxo), do que nos EUA, mas a situação em nada pode ser descrita como tranquila.

Nosso déficit de 230 bilhões de reais em 2023 não deve se repetir, dado que quase 100 bilhões de reais tiveram como causa os precatórios. Há boas expectativas de que a receita cresça neste ano. Mas convém olhar para a despesa, como a previdenciária e os salários do funcionalismo.

Manter um equilíbrio nas contas pode ser crucial para o Brasil, em especial neste momento em que o cenário externo parece ajudar, com o Brasil se tornando um grande exportador de petróleo.

No mesmo 2023, o saldo da balança comercial atingiu 3,7% do PIB, quase o dobro do ano anterior.

Em suma, estamos conquistando mais dólares, com menor esforço, dado que estamos nos tornando mais produtivos no setor primário (incluso o agro).

Este pode ser um sinal positivo para a economia brasileira, desde que estes recursos não se tornem apenas gastos, como fizemos no boom de commodities pós-2001.

E é justamente por isso que o respeito ao equilíbrio fiscal por aqui deve ser mantido na mais alta estima. Não somos mais um país jovem. O tempo da imprudência passou. Este é um momento onde certamente não cabe banqueiros e militantes juntos para contemporizar o déficit.

 

Felipe Hermes é jornalista

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    1. Muito bom o artigo, compreensível e claro para quem não é da área.

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