Ricardo Stuckert / PRLula cumprimenta Ricardo Lewandowski, seu novo ministro da Justiça e Segurança Pública

As elites irreais

Um conto do escritor Vladimir Nabokov oferece a imagem perfeita para entender como as castas que nos governam se descolaram da realidade
09.02.24

– Onde fica Sarajevo?

Vladimir Nabokov escreveu Sons em 1923, quando vivia em Berlim. Em russo no original, o conto não foi incluído nas coletâneas que o autor de Lolita publicou em vida. Dimitri Nabokov, filho do escritor russo, traduziu Sons para o inglês e o incluiu nas edições póstumas de Contos Reunidos, volume que traz a ficção breve do Nabokov pai. Neste livro, uma nota de Dimitri informa que Sons é uma “evocação transmutada” de um caso juvenil que autor teve, na Rússia, com uma mulher casada. Esta personagem não é nomeada no texto, mas deve ter sido, ainda segundo a nota, uma prima de Nabokov, chamada Tatiana. E é ela quem faz a singela pergunta transcrita acima.

Narrado em primeira pessoa pelo jovem amante, o conto não informa a data dos eventos relatados. Mas Sarajevo aparece no jornal russo que a mulher casada lê na casa de um professor que a convidou para tomar chá. Isso permite saber que a história se passa em 1914: o jornal está noticiando o assassinato do arquiduque Francisco Ferdinando, herdeiro presuntivo do Império Austro-Húngaro.

A pergunta da mulher é casual, desinteressada: ela não percebe qualquer sinal de perigo nos eventos ocorridos em Sarajevo. A personagem atravessa todo o conto segura de sua posição como senhora em uma propriedade rural cujos muitos criados fazem de conta que não veem as escapadas extraconjugais da patroa. Para ser justo, ela não teria como prever que a morte do arquiduque seria o estopim da I Guerra Mundial, ou que a revolução bolchevique eclodiria no meio desse conflito.

O jovem amante está encantado pela mulher, mas não deixa de notar suas atitudes antipáticas. Ela trata com um distanciamento entediado o professor que a recebeu para o chá (e que tem uma evidente queda por ela). No caminho de volta para casa, ao cruzar por uma jovem que passeia com seu cachorro, manifesta um desprezo gratuito pela desconhecida: “Aposto que ela estava dando um belo passeio no meu parque. Como eu detesto essa gente de férias”, diz ela para o amante. “Onde fica Sarajevo?” é a senha da ingenuidade e da arrogância da personagem – e, por extensão, da elite condenada a que ela pertence.

Na história como na literatura, a incapacidade de localizar Sarajevo no mapa espiritual de sua época é relativamente comum entre as elites. A síntese maior desse descompasso com a realidade é a frase famosa com que Maria Antonieta teria desdenhado as massas famélicas da França: “Se não têm pão, que comam bolos”. Na verdade, ela nunca falou nada parecido, mas o dito infame colou-se a sua lenda.

No Brasil de hoje, não há elite mais perdida no mapa dos Balcãs do que aquela que não se reconhece como elite: intelectuais, jornalistas, acadêmicos, escritores, artistas. A vitória de Jair Bolsonaro, em 2018, desorientou essa casta, que então recorreu ao mais fátuo dos instrumentos de luta política: o abaixo-assinado. Em um desses documentos, lançado em maio de 2020, os signatários – na maioria intelectuais e artistas, com alguns figurões empresariais e da política no meio – fizeram essa declaração assombrosa: “Somos a maioria”. Ao derrotar Bolsonaro nas urnas dois anos depois, Lula, com sua aura de líder popular, devolveu o norte às elites perdidas. Elas ganharam o conforto de saber que, se não eram a maioria, pelo menos estavam com a maioria. Que a vantagem do vencedor sobre o derrotado no pleito tenha sido de meros dois milhões de votos pareceu um fato negligenciável.

Ao subir a rampa, Lula fez seu aceno simbólico à “diversidade” do povo brasileiro. Nos gabinetes, porém, ele fala a linguagem da elite política a que de fato pertence, ainda que a propaganda enfatize sua origem operária. Na posse de Ricardo Lewandowski no ministério da Justiça, chegou a dizer que o salário que seu novo ministro ganhava quando era ministro do STF era “irreal” para as funções exercidas na corte. “Quando deixa a Suprema Corte, o cidadão pensa: ‘Bom, agora eu vou ganhar um pouco de dinheiro, vou trabalhar em outras coisas e vou viver a minha vida com a minha esposa’. Foi assim que o Lewandowski estava pensando em construir os anos que ele tem pela frente com a Yara”, disse o presidente.

O salário dos ministros do STF nos últimos meses em que Lewandowski ocupou seu lugar na corte estava em torno de 39 mil reais. Foi aumentado neste mês de fevereiro para 44 mil e chegará a 46 mil daqui a um ano, seguindo um plano de reajuste aprovado pelo Senado no final de 2022. Lula acha que isso é merreca: um ministro do STF só passa a ganhar “um pouco de dinheiro” quando deixa a corte máxima para prestar consultoria à dupla Joesley & Wesley em uma disputa acionária de bilhões de reais. Lula não está só fora de sintonia com os pobres por quem costuma chorar nos discursos: está em descompasso até com a realidade econômica da classe média.

De uma forma ou outra, o descolamento da realidade é comum a todos os três poderes, que vivem em rinhas permanentes mas falam em uníssono para nos reassegurar que vivemos na normalidade. Essa reiteração maníaca já ganhou contornos de negação psicanalítica. As instituições estão funcionando, garantiu Luis Roberto Barroso outro dia. Por que o presidente do STF precisa afirmar isso? Soa como um piloto de avião anunciando aos passageiros que as turbinas estão funcionando sem falhas, que o sistema de navegação não apresenta nenhum defeito, e que na chegada a Sarajevo o trem de pouso deve funcionar normalmente.

O descompasso entre elite e “povão” não conduz necessariamente à revolução que, podemos presumir, terá desapropriado o rico parque rural da personagem do conto de Nabokov. Não faz muito, o Brasil já viu um ensaio de revolução reacionária, que acabou, felizmente, em fiasco. Mas pode haver solavancos imprevistos no caminho da história.

À pergunta distraída da mulher que o encanta, o professor de Sons responde que Sarajevo fica na Sérvia. Hoje, a cidade é capital da Bósnia-Herzegovina.

 

Jerônimo Teixeira é jornalista e escritor

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  1. Brasil, tua piscina continua cheia: de ratos, traças, baratas, lacraias, escorpiões, sanguessugas, lesmas e serpentes. Viva à diversidade, Brasil!

  2. Barroso, depois de um período em que defendeu o combate à corrupção, voltou a ser aquele do "O julgamento do mensalão é um ponto fora da curva".

    1. Obrigada Jerônimo, Magnifico texto .Como fico feliz quando você coloca o dedo na FERIDA com sua competencia didatismo e erudição Essa elite não tem noção do mal que causa ao Pais e a esse POVO trabalhador e SOFRIDO,,,

  3. Nossa elite económica é ignorante, a cultural é idiota e a política é corrupta. As 3 são egoístas e completamente descoladas da realidade vivida pelo brasileiro "comum".

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