Edilson Rodrigues/Agência SenadoO que ensinará um professor de “relicário de heranças”? E qual será o conteúdo de “o que rola por aí”?

Fundamentos teóricos e metodológicos da ludopedagogia

Uma das partes compreensíveis da escola, a do nome das disciplinas, foi pro vinagre
09.02.24

O amigo, se tiver a minha idade, se lembrará da expressão “risonha e franca” com que se falava da escola nos tempos, perdidos no século passado, em que a frequentamos. Risonha e franca, sim, se dizia que era, e talvez até fosse mesmo. Mas quem o dizia? Foi preciso que nos viessem as cãs e as barbas brancas, e também a internet, para que soubéssemos que essa expressão é de um poema chamado “O estudante alsaciano”, composto pelo poeta português Acácio Antunes depois do fim da guerra franco-prussiana para gabar o patriotismo francês dos alsacianos sob jugo alemão. Seus três primeiros versos são: “Antigamente, a escola era risonha e franca, / do velho professor as cãs, a barba branca / infundiam respeito, impunham simpatia”. Esse “antigamente” o era do ponto de vista do poeta, visto que o poema depois muda de rumo: anuncia que nos tempos em que foi escrito já o professor era “austero e conciso”, e a escola tinha virado um calabouço sem riso.

Ora, eu, se não peguei no meu tempo de escola nenhum calabouço, também não peguei nem muito riso, nem maior franqueza: a escola era sisuda e meio dissimulada. E tampouco tive professores com cãs e barbas brancas: tive antes a professorinha de que falava o samba do Ataulfo Alves, aquela de quem ele tinha saudades e que lhe ensinou o beabá. Tive na verdade três ou quatro saudosas professorinhas, todas muito simpáticas, todas muito tranquilas, uma delas até bem bonita, que me ensinaram a tabuada, a crase, as vírgulas e travessões, as capitais dos estados, a divisão e a subtração, as letras dos hinos, as datas cívicas mais importantes, os nomes dos grandes vultos, etc. Ou seja, araram o terreno em que, mais tarde, outros professores e professoras me plantaram física, química, geografia, história, álgebra, trigonometria, etc. Boas professorinhas, boas disciplinas que nem sempre honrei com o melhor da minha atenção.

Em todo caso, fosse a escola como fosse – risonha, sisuda, franca, dissimulada – ela era sempre compreensível. A gente podia achar a escola uma festa ou um velório, mas era uma festa ou um velório que dava para entender.

Ora, parece que já não é mais assim, conforme depreendi da notícia que vi, recentemente, vinda lá dos lados do Rio de Janeiro. Segundo se noticia, uma das partes compreensíveis da escola, a do nome das disciplinas, foi pro vinagre, ficou pros de barbas brancas. Pois eis que lá no Rio apareceram umas disciplinas novas, com nomes diferentões como “O que rola por aí”, “Ação! Está em suas mãos”, “Relicário de heranças”, “De olho na rede digital”, “Vamos jogar”, “Práticas sustentáveis”, “Sempre em movimento”, “Quem és tu, cidadão” e “Envelhecimento da população brasileira”. E, ah, eu ia esquecendo, “Fundamentos teóricos e metodológicos da ludopedagogia e a educação infantil”, “Matemática fiscal” e “Psicologia da educação e psicomotricidade”. Essas novidades todas atendem às diretrizes de um plano educacional qualquer, um desses planos que nos dão o brilho costumeiro nos exames comparativos de escolaridade internacionais.

A partir de tais nomes é difícil abstrair o conteúdo das disciplinas. O que ensinará um professor de “relicário de heranças”? E qual será o conteúdo de “o que rola por aí”? Qual a possível ementa de “quem és tu, cidadão”, e qual é o professor que a domina? Quais são as “práticas sustentáveis” que os jovens devem aprender a praticar? E como esses inefáveis ensinamentos serão avaliados numa prova, num vestibular, num Enem? A prova vai ter matemática, história e vamos jogar? Física, geografia e ludopedagogia? Parece que só nos resta aceitar o mistério.

Penso nos meus tempos: eu, como o Herbert Vianna, não gostava de física e odiava química, e achava a matemática minha inimiga pessoal, disciplina criada só para me fazer infeliz. Mas a verdade é que se alguém me perguntasse o que é química, eu seria capaz de responder que é a arte de misturar coisas para fazer explosões; se alguém me perguntasse o que é matemática, eu saberia que é aquela coisa infernal que se faz com números e uma ou outra letra; se me perguntassem o que é física, eu saberia que é coisa do Einstein.

Agora, com “relicário de heranças” eu sinceramente embatuco. E aposto que a maioria dos docentes embatuca também. O consolo, se é que há, é o de saber que os meninos brasileiros, que se saem sempre muito mal em todas as matérias nas provas do Pisa, serão os primeiros do mundo em “o que rola por aí”, e talvez imbatíveis em “sempre em movimento.

Tivesse sido assim no meu tempo e eu teria sido, sem dúvida, mais feliz. Mas talvez não conseguisse hoje escrever esta coluna.

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  1. Excelente artigo e trás informações de como será a nova grade curricular. O que acontecerá com nossos jovens no futuro?

  2. Tivesse sido assim no nosso tempo, não conseguiríamos nem escrever uma mensagem inteligível para marcar um corte de cabelo no barbeiro. Excelente texto.

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