Flickr/IlariaA vitória dos "retrópicos" que acreditam num governo insensível às circunstâncias, pode levar a um resultado muito ruim

Utopia de retrovisor

Ressuscitar programas do passado para reviver um conforto perdido é até uma estratégia legítima, desde que não se acredite no próprio discurso
06.04.23

É grande a tentação do uso de clichês ao fazer um texto sobre os 100 primeiros dias do governo Lula. Com a repetição de programas da primeira passagem do PT pelo Planalto (2003 e 2015), o primeiro impulso é caracterizar esta gestão como um “museu de grandes novidades”, para usar um verso de Cazuza da canção O tempo não para. Outra possibilidade é lembrar o vaticínio de Karl Marx no 18 Brumário de Luís Bonaparte, de que “a história se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa” para fazer uma previsão tendo o bônus de usar o principal mentor intelectual da esquerda.

Mas, se o uso de clichês emburrece, pode também servir de isca para não assustar leitores em contato com temas complexos e conduzi-los para reflexões mais críticas. O que se vê neste momento é uma difícil crise de utopia vivida pelo governo. A falência da fábrica de horizontes que um dia foi o PT está evidente desde a campanha, cuja principal promessa foi uma chuva de “picanha e cerveja”. Para a esquerda, que acredita na possibilidade de reformar o espírito humano a partir do desenvolvimento de uma consciência coletiva, trata-se de uma melancólica confissão de fracasso, especialmente quando se lembra da eleição de 2002 e todo seu ideal de renovação institucional.

Essa não é uma aflição só do PT ou da esquerda. A ascensão de discursos populistas a partir do desapontamento das pessoas com a democracia, ela própria delineada em termos ambiciosos de igualdade e de prosperidade difíceis de serem atingidos, é um fenômeno generalizado. O que gera culpa, no entanto, é a reação diante de barreiras tão difíceis. Não se tem rumado para agendas reformistas. Pelo contrário, a própria institucionalidade tem sido responsabilizada pela paralisia e pela falta de resultados, criando um barulho cuja função não é outra senão distrair e duvidar da inteligência do eleitor.

A falta de sofisticação para entender e lidar com esse cenário empurra o governo para uma espécie de retropia, a soma das palavras utopia e retrovisor, que intuitivamente indica que a felicidade ficou para trás e o melhor a fazer é dar meia-volta. Pode-se dizer que ressuscitar programas do passado para reviver um conforto perdido é até uma estratégia legítima, se o objetivo for providenciar tempo enquanto outras soluções são desenhadas, e desde que não se acredite no próprio discurso.

Aí que mora o perigo. Insistir em crenças bastante duvidosas, para dizer o mínimo, mina de morte a credibilidade do governo pois, diz o povo, que é “irracional fazer as mesmas coisas e esperar resultados diferentes” (malditos clichês!). É verdade que basta incentivar o consumo popular por meio de programas sociais para gerar arrecadação e resolver o problema fiscal? Que o mundo vive uma Guerra Fria onde é possível flutuar e receber benefícios dos dois polos, independente da cláusula democrática? Que é possível criar um ciclo de desenvolvimento econômico a partir de pacotes de infraestrutura? Que exercer novamente o presidencialismo de coalizão, com bases amplas, fiéis e disciplinadas é só uma questão de abrir mais espaço nas estatais para nomeações e retomar o controle do Orçamento? Que o sonho dos trabalhadores de aplicativos é ter carteira assinada e contribuir obrigatoriamente para um sindicato forte filiado à CUT? Que o problema da desindustrialização é falta de subsídios setoriais combinados com uma boa política de substituição de importações ou de conteúdo nacional? Que novas refinarias ajudarão o Brasil a ter um preço de combustíveis fósseis menor do que o praticado internacionalmente (a preços brasileiros)? Que empresas estatais são a melhor solução para cobrir o déficit de saneamento básico? Que servidores públicos com remuneração muitas vezes maior do que a praticada no mercado são a chave para o problema da baixa eficiência? Que o modelo antigo de ensino médio é um sucesso? Que a taxa de juros é algo que se pode impor ao mercado?

O PT se mostra um partido congelado, colocado no freezer em 2016 e retirado apenas quando Lula deixou a prisão, em 2019. Durante esse período, ficou mobilizado em torno do apoio ao seu líder e deixou de discutir políticas públicas, de participar efetivamente do debate de modernização do mundo e de demonstrar discernimento para entender o que melhorou no país durante sua ausência e merece ser mantido.

Curioso apenas que o único alívio sentido seja a possibilidade de uma outra repetição da história: que Fernando Haddad esteja para Lula como Fernando Henrique esteve para Itamar Franco. Claro que essa analogia força a barra, mas objetiva, de novo, dizer que o futuro do governo depende da construção de pontes de racionalidade e pragmatismo entre o Executivo e o Legislativo — pontes suficientemente sólidas para oferecer algum norte para os agentes econômicos, do mercado e do setor produtivo. Por outro lado, a vitória dos retrópicos, dos utópicos de retrovisor, que acreditam num governo insensível às circunstâncias (que estão ruins), pode levar a um resultado muito ruim. Daí um prognóstico não muito animador. Esses 100 dias mostraram que se as coisas derem certo, o Brasil pode reviver Itamar Franco. Se derem errado, será Dilma Rousseff III, com direito a turbulência política.

Pensar dessa forma, pelo menos, é um incentivo para abandonar o “clichesismo” analítico, se for permitido o neologismo. Afinal, buscar resolver problemas do futuro com soluções do passado nunca foi uma boa alternativa em um país com a história do Brasil.

 

Leonardo Barreto é cientista político e diretor VectorRelgov.com.br

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  1. Não tem como comparar Lula com Itamar, assim como Fernando Haddad com Fernando Henrique. Lula é um corrupto, Itamar não foi. Fernando Haddad é um capacho enquanto Fernando Henrique era um intelectual competente. Sendo assim, não tem como dizer que o Governo Lula dará certo. Com certeza será um fracasso. É uma tragédia anunciada.

  2. Compartilho do mesmo sentimento, como se naquela época tivesse sido o ápice do desenvolvimento brasileiro, e que tivessémos chegado ao patamar de 1º mundo

  3. Muito Bom! Gostei do neologismo “Retrópico”, bem melhor que outra repisada analogia: Make Brazil Great Again. Populismo é populismo, não importa onde, se à esquerda ou à direita, só congrega fiéis seguidores capazes apenas da destruição.

  4. Velhas soluções para velhos problemas, não trarão novos resultados. Mais do mesmo de um partido que se perdeu no tempo e no culto à personalidade de um ego inflado e de ética duvidosa.

  5. Lula já deveria ter se separado da Janja e voltado para os braços Marisa faz tempo. Por favor que hajam almas encantadas que consigam adentrar no pouco de cérebro dos eleitores fanáticos extremistas. Apaguem Lula e BOZO das cabecinhas, vamos para frente.

  6. Em 2003 o país era outro e bons programas em favor dos desafortunados que existem desde 1994 foram aperfeiçoados mas nenhum governante ousou o essencial que é a completa reestruturação política e econômica do país hoje tão desnivelado que os pobres são meros escravos e a premissa do crescimento econômico acelerado para distribuir o bolo depois dos governos militares nunca foi implantado e sem isto seremos apenas o lixo da humanidade.

    1. De pleno acordo Rafael o presidente Itamar Franco que recebeu o país à beira do caos entregou-o dois anos depois equilibrado e saneado pronto para o crescimento rápido que ocorreu e foi tão digno que o único "escândalo" do seu governo foi o uso de uma vagaba sem calcinha para reduzí-lo algo que hoje certamente lhe traria alguma merecida condecoração por ainda gostar da tradicional aranha de veneno doce.

  7. O PT não está estacionado em 2016, suas ideias são do início - meado do século passado. O desastre é certo.

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