Google Art ProjectO Grito, de Edvard Munch

Corre que lá vem o arcabouço

06.04.23

Acordei meio tarde dia desses e, mal liguei o rádio (eu sou do tempo do rádio, como o Woody Allen), já tacaram no meu peito o tal do “arcabouço fiscal”. Ainda meio adormecido, me assustei, porque ouvi “calabouço fiscal” e fiquei com medo tanto de ofender a Democracia sem perceber, quanto de sonegar algum imposto (também sem perceber, claro: imposto é que nem mosca, tem de monte e é difícil distinguir um de outro). Depois repetiram; aí ouvi melhor e me acalmei um pouco: achei que estavam falando desse cipoal que é o mundo dos impostos no Brasil. Aí falaram mais e finalmente entendi que se trata de novidade emanada, qual miasma, do novo governo velho.

Mas que novidade exatamente? De cara me intrigou a palavra “arcabouço”, que é complicada, polissílaba e portanto inimiga do pobre (segundo diz um amigo meu, toda palavra proparoxítona ou com mais de três sílabas foi feita para enganar e atormentar o pobre). Desconfiei. Pensei: tá aí o pulo do gato. Fui ao dicionário, e eis o que descobri:

Arcabouço, s. m. 1. Conjunto dos ossos de um vertebrado. 2. Estrutura óssea do peito. 3. [Por extensão] Constituição física. 4. Estrutura de madeira de uma construção. 5. Traçado inicial de algo; delineamento; esboço.

Entendi, portanto, que o “arcabouço fiscal” é o esboço, o delineamento das intenções ou planos do novo governo velho em relação à nossa taxação. Ou seja: a maneira pela qual o novo governo velho pretende aumentar os impostos. O assunto é palpitante, porque eu, como aliás todos os brasileiros, sou taxadíssimo, e qualquer novidade na área faz meu coração disparar.

Em todo caso, coitado do pobre. Aliás, coitado também do remediado. Mas para o pobre a coisa é pior, porque o complemento “fiscal” o aterroriza ainda mais. Ele acaba entendendo, aliás com toda a razão, que o tal arcabouço é um fiscal que vem lhe arrancar os ossos do peito (e do pescoço, e das pernas, e a carne e o sangue e as tripas), ou lhe dar de paulada em cima. Uma espécie de “rapa”, só que com crachá do fisco. Imagino a turma no Parque Dom Pedro ou na 25 de Março gritando:

— Corre, corre, que lá vem o arcabouço!

Ou melhor: corre, que lá vem a derrama. Contra a qual as revoltas costumam acabar mal.

* * *

Ainda meio inconformado com esse negócio de reescrever livros segundo as sensibilidades modernas, pensei em duas coisas.

Uma delas é reescrever os mitos gregos, corrigindo-os segundo essa tal sensibilidade moderna. Acabar com o machismo de Júpiter, denunciando-o como violador (ainda se usa essa palavra?) de Leda e Europa e desmentindo essa história fajuta de que Minerva, a Sabedoria, pudesse ter brotado de sua cabeça tacanha. E acabar também com a exclusividade dos heróis: Herculéia (ou Herculana, ou, sei lá, Herculóida), e não mais Hércules. Teséia, e não mais Teseu. Perséia (ou Persoa), e não mais Perseu. Criar um Meduso, um Megero, três Parcos e três Erínios. Aliás, por que Titãs e não Titonas? Ou Titoas? E vamos arranjar uns deuses trans. Deuses trans combinam melhor com o Pégaso, não é? E que tal uma deusa mandando no Érebo? Chega de Marte: a deusa da guerra será Marta. Vamos aggiornar o Olimpo. Ou melhor, a Olimpa.

A segunda é fundar uma editora cujo catálogo seja dedicado à reescritura de obras recentes segundo os padrões da sensibilidade antiga. Ou seja, tudo ao contrário: onde tem heroína e vilão, a gente bota herói e vilã; onde tem oprimido dando a volta por cima, a gente põe opressor tratorando; onde tem operário digno, a gente põe magnata bebendo uísque e fumando charuto; onde tem líderes comunitários, a gente põe a polícia; onde a ecologia triunfa, a gente enche de estacionamentos; onde tem queijaria artesanal, a gente taca indústria de iogurte; onde tem feminista, a gente põe dona de casa; todo cabelo colorido vira escovinha, e assim por diante.

O nome da editora já está escolhido: Companhia das Tretas (sugestão de um amigo). Ainda não abri a Casa porque estou esperando, sentadinho, o Capital.

 

Orlando Tosetto Júnior é escritor

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  1. Será que basta reescrever os livros para mudar a História (em 1984, a reescrita funcionou, ou será que vão reescrever 1984 também?) Escrever livros que não mostram a realidade vai mudar essa mesma realidade? São apenas conjecturas sem pretensão sobre essas modernidades modernas rsrsrs

  2. Acho os revisionismos de livros uma ignorância muito pretensiosa. Mas acredito que escrever livros novos agora conforme as considerações atuais é solução, não ação a ser zoada. Talvez o desafio seja produzir algo bom seguindo tantas e mutáveis regras.

  3. Mesmo que este texto tenha sido escrito em "tom de blague" (como sou antigo lembrei dessa palavra!) sem duvida, reflete a nossa dura e triste realidade, que vai piorar. Parabéns!

  4. O "pânico" é a imagem exata do que hoje o povo em massa sente amargurado pela péssima escolha pois vê claro que a real intenção é estourar os gastos para a roubalheira da quadrilha empoderada e se não houver reação da única força hoje capaz de freá-la que é o Congresso Nacional se não agir em vez de como vemos se vender com bilhões de emendas enfiadas democraticamente rabo arriba do canelau que fez e que não fezuÉle todos vítimas do mano tonta em insana vingança contra a nação desesperada.

  5. Orlando Tosetto, estou adorando seus textos, assim como gosto do Ruy e do Agamenon. começo a sentir um ar de Pasquim por aqui. E é muito melhor que ficar lendo discussões sérias sobre o Arcabouço Fiscal, UNASUL, Ortega, extrema-direita etc. Sem querer fugr da realidade, mas em tudo que é mídia podemos buscar, e, conforme nosso gosto. Globo, Jovem Pan, Reinaldo Azevedo, Monark etc.

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