Corre que lá vem o arcabouço
06.04.23Acordei meio tarde dia desses e, mal liguei o rádio (eu sou do tempo do rádio, como o Woody Allen), já tacaram no meu peito o tal do “arcabouço fiscal”. Ainda meio adormecido, me assustei, porque ouvi “calabouço fiscal” e fiquei com medo tanto de ofender a Democracia sem perceber, quanto de sonegar algum imposto (também sem perceber, claro: imposto é que nem mosca, tem de monte e é difícil distinguir um de outro). Depois repetiram; aí ouvi melhor e me acalmei um pouco: achei que estavam falando desse cipoal que é o mundo dos impostos no Brasil. Aí falaram mais e finalmente entendi que se trata de novidade emanada, qual miasma, do novo governo velho.
Mas que novidade exatamente? De cara me intrigou a palavra “arcabouço”, que é complicada, polissílaba e portanto inimiga do pobre (segundo diz um amigo meu, toda palavra proparoxítona ou com mais de três sílabas foi feita para enganar e atormentar o pobre). Desconfiei. Pensei: tá aí o pulo do gato. Fui ao dicionário, e eis o que descobri:
Arcabouço, s. m. 1. Conjunto dos ossos de um vertebrado. 2. Estrutura óssea do peito. 3. [Por extensão] Constituição física. 4. Estrutura de madeira de uma construção. 5. Traçado inicial de algo; delineamento; esboço.
Entendi, portanto, que o “arcabouço fiscal” é o esboço, o delineamento das intenções ou planos do novo governo velho em relação à nossa taxação. Ou seja: a maneira pela qual o novo governo velho pretende aumentar os impostos. O assunto é palpitante, porque eu, como aliás todos os brasileiros, sou taxadíssimo, e qualquer novidade na área faz meu coração disparar.
Em todo caso, coitado do pobre. Aliás, coitado também do remediado. Mas para o pobre a coisa é pior, porque o complemento “fiscal” o aterroriza ainda mais. Ele acaba entendendo, aliás com toda a razão, que o tal arcabouço é um fiscal que vem lhe arrancar os ossos do peito (e do pescoço, e das pernas, e a carne e o sangue e as tripas), ou lhe dar de paulada em cima. Uma espécie de “rapa”, só que com crachá do fisco. Imagino a turma no Parque Dom Pedro ou na 25 de Março gritando:
— Corre, corre, que lá vem o arcabouço!
Ou melhor: corre, que lá vem a derrama. Contra a qual as revoltas costumam acabar mal.
* * *
Ainda meio inconformado com esse negócio de reescrever livros segundo as sensibilidades modernas, pensei em duas coisas.
Uma delas é reescrever os mitos gregos, corrigindo-os segundo essa tal sensibilidade moderna. Acabar com o machismo de Júpiter, denunciando-o como violador (ainda se usa essa palavra?) de Leda e Europa e desmentindo essa história fajuta de que Minerva, a Sabedoria, pudesse ter brotado de sua cabeça tacanha. E acabar também com a exclusividade dos heróis: Herculéia (ou Herculana, ou, sei lá, Herculóida), e não mais Hércules. Teséia, e não mais Teseu. Perséia (ou Persoa), e não mais Perseu. Criar um Meduso, um Megero, três Parcos e três Erínios. Aliás, por que Titãs e não Titonas? Ou Titoas? E vamos arranjar uns deuses trans. Deuses trans combinam melhor com o Pégaso, não é? E que tal uma deusa mandando no Érebo? Chega de Marte: a deusa da guerra será Marta. Vamos aggiornar o Olimpo. Ou melhor, a Olimpa.
A segunda é fundar uma editora cujo catálogo seja dedicado à reescritura de obras recentes segundo os padrões da sensibilidade antiga. Ou seja, tudo ao contrário: onde tem heroína e vilão, a gente bota herói e vilã; onde tem oprimido dando a volta por cima, a gente põe opressor tratorando; onde tem operário digno, a gente põe magnata bebendo uísque e fumando charuto; onde tem líderes comunitários, a gente põe a polícia; onde a ecologia triunfa, a gente enche de estacionamentos; onde tem queijaria artesanal, a gente taca indústria de iogurte; onde tem feminista, a gente põe dona de casa; todo cabelo colorido vira escovinha, e assim por diante.
O nome da editora já está escolhido: Companhia das Tretas (sugestão de um amigo). Ainda não abri a Casa porque estou esperando, sentadinho, o Capital.
Orlando Tosetto Júnior é escritor
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Será que basta reescrever os livros para mudar a História (em 1984, a reescrita funcionou, ou será que vão reescrever 1984 também?) Escrever livros que não mostram a realidade vai mudar essa mesma realidade? São apenas conjecturas sem pretensão sobre essas modernidades modernas rsrsrs
Arcabouço: Políticos enchendo a Arca com dinheiro do nosso bolso...
Acho os revisionismos de livros uma ignorância muito pretensiosa. Mas acredito que escrever livros novos agora conforme as considerações atuais é solução, não ação a ser zoada. Talvez o desafio seja produzir algo bom seguindo tantas e mutáveis regras.
Eis um arcabouço de narrativas para o desgoverno em curso. Valeu!
Mesmo que este texto tenha sido escrito em "tom de blague" (como sou antigo lembrei dessa palavra!) sem duvida, reflete a nossa dura e triste realidade, que vai piorar. Parabéns!
A sina do pobre é pagar... imposto, imposto
Excelente! …
Cuidado, vem aí o ARCA BOLSO!
Ótimo Tosetto! 👏
Não perco está coluna. Sempre ótima 👏👏👏👏
O "pânico" é a imagem exata do que hoje o povo em massa sente amargurado pela péssima escolha pois vê claro que a real intenção é estourar os gastos para a roubalheira da quadrilha empoderada e se não houver reação da única força hoje capaz de freá-la que é o Congresso Nacional se não agir em vez de como vemos se vender com bilhões de emendas enfiadas democraticamente rabo arriba do canelau que fez e que não fezuÉle todos vítimas do mano tonta em insana vingança contra a nação desesperada.
Orlando Tosetto, estou adorando seus textos, assim como gosto do Ruy e do Agamenon. começo a sentir um ar de Pasquim por aqui. E é muito melhor que ficar lendo discussões sérias sobre o Arcabouço Fiscal, UNASUL, Ortega, extrema-direita etc. Sem querer fugr da realidade, mas em tudo que é mídia podemos buscar, e, conforme nosso gosto. Globo, Jovem Pan, Reinaldo Azevedo, Monark etc.
Companhia das Tretas é ótimo!
Hahahaha!