Flickr/Naoki NakashimaProva em Tóquio: é no caminho que descobrimos que há coisas mais importantes

A disputa contra o próprio corpo

Depois que começou a correr maratonas, Haruki Murakami descobriu que a dor é inevitável, mas sofrer é opcional
07.04.23

Um bilhão e meio de pessoas assistiram à final da Copa do Mundo entre França e Argentina, no fim do ano passado. A disputa de Lionel Messi contra Kylian Mbappé entregou muito mais do que as elevadas expectativas prometiam: desempenhos exuberantes, gols e defesas espetaculares nos últimos minutos, prorrogação, tensão, reviravoltas e uma emocionante disputa de pênaltis. Este artigo promete exatamente o contrário de tudo isso.

Há uma parte do esporte anterior à competição com adversários — a disputa contra o próprio corpo. Poucas atividades físicas incorporam isso melhor do que a corrida de rua. É o corredor contra ele mesmo. “A questão é que não sou muito dado a esportes de equipe. É simplesmente assim que eu sou. Sempre que jogo futebol ou beisebol — na verdade, desde que me tornei adulto isso ficou cada vez mais raro —, não me sinto à vontade”, conta o japonês Haruki Murakami em Do que eu falo quando eu falo de corrida (Companhia das Letras).

Talvez seja porque não tenho irmãos, mas jamais fui capaz de participar do tipo de jogo que envolve outros jogadores. Também não sou muito bom em esportes de um contra um, como tênis. Gosto de squash, mas em geral, quando se trata de um jogo contra alguma outra pessoa, o aspecto competitivo me deixa desconfortável. E quanto às artes marciais, também, não contem comigo”, explica-se Murakami, que começou a correr diariamente em 1982 e, até onde se sabe, ainda não parou. Quando publicou seu relato, em 2007, o romancista tinha corrido 23 maratonas.

Murakami diz que correr se tornou o hábito mais útil e significativo de sua vida; tornou-lhe mais forte, física e emocionalmente. “No momento meu objetivo é aumentar a distância percorrida, de modo que velocidade não vem tanto ao caso. Contanto que eu possa correr uma certa distância, isso é tudo que importa. Às vezes, corro rápido quando sinto vontade, mas, se aumento o ritmo, diminuo a quantidade de tempo que corro, e a ideia é deixar que a exaltação que sinto no fim de cada corrida dure até o dia seguinte. É o mesmo tipo de abordagem que creio ser necessária quando estou escrevendo um romance. Paro todo dia bem no momento em que sinto que posso escrever mais.”

O livro é todo desse jeito, monótono como uma longa maratona. Parece que Murakami não vai chegar a lugar nenhum, como numa corrida de rua. E por que precisaria chegar? “Não comecei a correr porque alguém me pediu para me tornar um corredor. Assim como não me tornei um romancista porque alguém me pediu para ser um. Certo dia, do nada, quis escrever um romance. E um dia, do nada, comecei a correr”, diz. Pois eu comecei a correr para perder peso, como boa parte dos corredores de rua. E comecei a escrever, igualmente, para ser admirado.

É no caminho que descobrimos que há coisas mais importantes, como aprender algo sobre o assunto acerca do qual escolhemos escrever. Murakami diz, em Romancista como vocação (Companhia das Letras), que “escrever romances não é um trabalho apropriado para pessoas muito inteligentes e de mente afiada”. Além de monótonos, os livros de não ficção do japonês são saudáveis exercícios de humildade — duas características fora de moda num mundo dominado por telefones celulares e redes sociais.

A corrida é, hoje, o momento durante o qual me mantenho por mais tempo longe das telas, ouvindo música, livros ou nada. É um tempo para pensar, enquanto desviamos dos buracos, dos cachorros e dos carros. “Certa vez, eu estava num quarto de hotel em Paris lendo o International Herald Tribune quando topei com uma matéria especial sobre maratona. Havia entrevistas com inúmeros maratonistas famosos e foi-lhes perguntado que mantra especial passava por suas cabeças para mantê-los animados durante uma corrida”, divaga Murakami ao falar sobre corrida.

A resposta de um corredor lhe chamou a atenção: “A dor é inevitável. Sofrer é opcional“. “Digamos que você esteja correndo e comece a pensar: Cara, que dor, não aguento mais. Sentir dor é uma realidade inescapável, mas continuar ou não suportando é algo que cabe ao corredor. Isso em grande parte resume o aspecto mais importante da realização de uma maratona”, comenta o japonês, que chegou a correr 100 quilômetros em um mesmo dia. Ele diz que foi isso o que descobriu ao colocar seu corpo efetivamente em movimento, que sofrer é opcional. Não valeu medalha ou troféu, não garantiu lugar em pódio, nem rendeu bilionários direitos de transmissão, mas é difícil imaginar uma vitória maior.

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  1. Eu corro. Modestamente. Quando me deparei com esse texto lembrei que faz quase 30 dias que não corro. Me acomodei, relaxei. Depois de ler esse texto, voltarei.

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