Enquanto flerta com a direita, Marina tenta conquistar à esquerda
Ex-petista, Marina Silva é a principal herdeira dos votos de Lula enquanto o candidato do PT, condenado e preso, não deixa de vez a disputa e apresenta Fernando Haddad como seu poste-substituto. No cenário sem Lula, ela dobra as intenções de voto. No Datafolha da última quarta-feira (22), ela vai de 8% para 16%. O instituto também mostra que 21% do eleitorado do petista migraria para Marina, quase o equivalente a que, somados, herdam Ciro Gomes e Haddad. A manutenção desse patamar, claro, ainda é incerta. Ela tem poucos segundos no horário eleitoral gratuito e, ao mesmo tempo que tenta angariar votos entre simpatizantes de Lula, não poupa críticas ao ex-chefe e elogia a Lava Jato. E é aí que se instala a grande contradição de sua campanha. Como levar adiante discursos tão distintos?
A última vez que Marina e Lula conversaram foi no dia 4 de fevereiro de 2017. Era um sábado. Ela estava em sua casa no Lago Sul, área nobre de Brasília. Ele, em São Bernardo do Campo, para o velório de sua esposa Marisa Letícia, que morrera na véspera. Gilberto Carvalho, ex-chefe de gabinete de Lula, foi quem intermediou o telefonema. A breve conversa deixou Marina incomodada. Lula passara a maior parte da ligação falando de política e criticando a Lava Jato. “Como ele fala de política quando está velando a mulher?”, disse Marina, depois, a aliados.
Era mais um capítulo da relação que esfriara havia dez anos, após ela surpreendê-lo com um pedido de demissão do Ministério do Meio Ambiente depois de sucessivas derrotas políticas, especialmente para os ruralistas e para a então ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff. Tudo com o aval de Lula.
De lá para cá, ele não perdeu a oportunidade de fragilizá-la politicamente. O exemplo mais claro foi quando idealizou, juntamente com o marqueteiro João Santana, a estratégia de aniquilar sua candidatura em 2014. Aquele filmete que dizia que, com Marina eleita, faltaria comida no prato dos brasileiros. (o que, na verdade, aconteceu com a crise causada pelo governo Dilma), foi a gota d’água. Desde então, ela vem se vingando. Marina atirou pela primeira vez ao apoiar o tucano Aécio Neves no segundo turno daquela eleição. O segundo tiro foi a demonstração favorável ao impeachment de Dilma em 2016. O terceiro tiro veio neste ano: o apoio à prisão de Lula. Ela enfatizou que o petista teve amplo direito de defesa com advogados bem pagos e a Justiça não deve tratá-lo de maneira desigual apenas por sua condição de ex-presidente.
Enquanto rompia com o PT, Marina foi ampliando o apoio entre as ONGs. Antes, a relação se resumia às entidades “verdes” dos tempos de Ministério do Meio Ambiente que receberam cargos de destaque na pasta e milhões de reais em convênios. Ela passou também a flertar mais claramente com a direita liberal. Cresceu a influência no seu entorno de grupos que ela e seu grupo classificam de “nova classe empresarial”, assim entendidos por terem interesses para além de ganhar dinheiro. Um exemplo é o “Sistema B Brasil”, idealizado em 2013, que hoje reúne 120 empresas que seguem determinados parâmetros de governança e transparência. A Natura, a Laureat, dona das universidades FMU e Anhembi-Morumbi, e a Mãe Terra, que foi adquirida recentemente pela Unilever, fazem parte do grupo. O seu diretor-executivo era Marcel Fukuyama, que deixou o posto para auxiliar na coordenação de campanha de Marina. “A ideia é influenciar na criação de um novo tipo de empresa, que gere impacto social e ambiental”, disse Fukuyama.
Outro grupo é a Coalizão Brasil, Clima, Florestas e Agricultura, fundado em 2015, atualmente com mais de 170 empresas e entidades que defendem uma economia movida a baixas quantidades de carbono, causador do efeito estufa. Há gigantes do setor privado como Basf, Cargill, Danone, Duratex, Boticário e Klabin. A Coalizão já emplacou no programa de governo dela algumas propostas. Há também o “Agora!”, criado em 2016, um dos assim chamados movimentos de “renovação política”, com viés extremamente liberal. Seu mais conhecido integrante é o apresentador Luciano Huck, mas há também uma leva de nomes ligados ao mercado, ao setor produtivo e ao PSDB. Caso do empresário Carlos Jereissati Filho, sobrinho do senador Tasso Jereissati, e de Ana Arida, filha de Persio Arida, formulador do programa de governo de Geraldo Alckmin. O grupo assinou no início do ano um acordo com a Rede que permitiu que parte de seus membros se candidatasse pela sigla. Segundo um dos fundadores do “Agora!”, Leandro Machado, o ideário do grupo é “liberal-progressista: “O Estado não precisa prestar todos os serviços. Basta coordenar e gerenciar.” Uma clara oposição ao intervencionismo estatal defendido pelos petistas e a esquerda em geral.
Ao lado desses movimentos todos, um significativo passo à direita dado por Marina é bem traduzido na figura que coordena sua campanha. Trata-se de Andrea Gouvêa Vieira, ex-vereadora do Rio pelo PSDB que deixou o tucanato após uma série de conflitos com dirigentes locais da legenda. Ela é oficialmente responsável pela relação de Marina com a imprensa, mas dentre suas funções extra-oficiais está abrir os caminhos da campanha para os endinheirados do Rio. Parte disso deve-se ao fato de ser casada com o advogado Jorge Hilário Gouvêa Vieira, irmão do presidente da Federação das Indústrias do Rio de Janeiro, Eduardo Eugênio Gouvêa Vieira. O clã sempre foi ligado ao setor petroquímico, até vender em 2007 a rede Ipiranga para a Petrobras, Braskem e grupo Ultra. Em São Paulo, quem auxilia na captação de dinheiro é Gisela Moreau, historiadora que integra a Executiva da Rede e é próxima de empresários da capital paulista.
Tudo isso só foi possível porque o partido de Marina passou por uma espécie de expurgo durante a queda de Dilma. Até então, duas linhas de pensamento predominavam na legenda e conviviam com certa cordialidade. Os “marineiros”, mais à direita, e os “puxadinhos do PT”, mais à esquerda. Era preciso, porém, que o partido tomasse uma posição sobre o mandato de Dilma. A posição final foi pró-impeachment, o que provocou uma debandada do pessoal do “puxadinho” e, depois, permitiu à Rede adotar o discurso lavajatista de hoje e crítico a Lula.
O leque de apoios que Marina construiu e trouxe para dentro de sua campanha não lhe assegura aquele que é um dos seus pontos mais frágeis: a falta de gente com mandato. Hoje, o seu partido tem apenas dois deputados federais e um senador. A previsão é de que a Rede consiga eleger dez deputados — que, somados aos outros dez estimados pelo aliado PV, chegariam a uma bancada de apenas 20 representantes na Câmara. Insuficiente, portanto, para levar adiante qualquer das reformas por ela defendidas. Com as devidas diferenças, Marina tem o mesmo problema de Jair Bolsonaro, de quem tenta ser a antípoda perfeita neste início de campanha. Avalia-se agora que, se ela enfatizar o discurso anti-Bolsonaro, isso lhe renderá mais votos entre os eleitores de centro-direita e, claro, de esquerda.
É usual a candidata falar em governar “com os melhores de cada partido”, mas a realidade é que o sistema político se blindou na reforma política de 2017 de tal forma que todas as análises apontam para uma baixa taxa de renovação no Congresso. Com a esquerda rompida com Marina, o Centrão pronto para revidar os ataques à aliança com Geraldo Alckmin, os ruralistas querendo distância de gente próxima à agenda ambiental, o que lhe restaria?
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