RevolutionBooksNYC via YouTubeOs espertalhões que atrapalharam a aula de Timothy Snyder em Yale

Em defesa da indignação seletiva

Você não precisa declarar solidariedade a todo povo sofredor da Terra, nem ter sempre uma opinião firme sobre os conflitos do dia. Basta ser honesto nas causas que escolher
15.03.24

Comunistas impediram Timothy Snyder de dar aula. Aconteceu no final do mês passado, em Yale, onde o autor de Na Contramão da Liberdade leciona. O historiador apresentava a seus alunos uma conferência intitulada “Hitler, Stalin e nós” quando a sala foi invadida por cerca de dez manifestantes portando cartazes. Eram membros de um tal Partido Comunista Revolucionário. Há um vídeo do incidente, feito por um dos invasores. Parecem ser todos jovens, com exceção de seu líder, Raymond Lotta, um senhor meio calvo, de óculos grandes e bigode grisalho, que anunciou: “Hoje não vai ter a aula de sempre”.

Como tantas sandices das universidades de elite americanas (e que às vezes são macaqueadas em instituições brasileiras – por exemplo, a Universidade Federal da Bahia), o caso é ao mesmo tempo grave e ridículo. É grave que o expediente de barrar ideias no grito tenha se consagrado em um ambiente no qual a discussão de ideias opostas deveria ser ampla e livre. E o ridículo do episódio começa pela existência, na segunda década do século 21, de uma agremiação comunista dedicada a limpar a barra de Stalin.

Os comunistinhas ficaram mordidos por Snyder dar uma aula alinhando seu líder eterno a Hitler – como se a dupla não houvesse partilhado a Polônia… Eis o que dizia um dos cartazes carregados pelo grupo: “Hitler matou seis milhões de judeus e Stalin salvou 1,6 milhões de judeus”. Lotta disse aos alunos de Snyder que naquela aula eles estavam sofrendo “lavagem cerebral”, com “mentiras e calúnias sobre o comunismo”.

Entrevistado pelo jornal da universidade, Lotta disse que seu protesto visava chamar Snyder para um debate sobre “o passado e o futuro da revolução comunista”. Ele já havia convidado o professor para o debate em uma ocasião anterior, mas Snyder não quis bater palma para maluco dançar. A manifestação tampouco alcançou seus objetivos: o historiador e seus alunos acabaram se retirando para outra sala de aula, e os revolucionários foram conduzidos para fora do campus pelos seguranças de Yale.

“Onde está a indignação moral de Snyder pelo genocídio financiado pelos Estados Unidos em Gaza?”, perguntava um dos cartazes que os comunistas trouxeram a Yale. A implicação é que Snyder seria seletivo em sua indignação. Pois é bem sabido que ele é hoje um homem com uma causa – a causa da Ucrânia. E seu empenho não se limita à oposição de cátedra: ele vem levantando fundos para ajudar no esforço de guerra ucraniano.

Eu não sei o que Snyder pensa sobre Israel e Palestina. Poderia pesquisar a respeito no Google, mas não vou fazer isso. Por que o faria, se a especialidade do autor de Terras de Sangue é a história da Europa Oriental no século 20? Um acadêmico não precisa ter opinião sobre tudo – aliás, um acadêmico responsável sabe que deve se calar sobre temas que não estudou a fundo. Palpite irresponsável é prerrogativa profissional de jornalistas…

Do ponto de vista ético, tampouco Snyder estaria obrigado a emprestar sua reputação em prol de todo e qualquer povo que padece em nosso planeta infeliz. Cobrar que ele demonstre indignação pelo sofrimento palestino faz tanto sentido quando pedir que ele faça o mesmo pelos miseráveis do Sudão ou da Venezuela. De resto, indignação não reconstrói prédios nem alimenta crianças famélicas. Geralmente, serve só para exaltar a virtude moral do indignado.

A indignação seletiva está muitas vezes associada à hipocrisia. O chefe de Estado que ataca o bombardeio indiscriminado em Gaza mas nada diz sobre a devastação de cidades ucranianas como Mariupol está obviamente fazendo reverências indecentes a Putin. E o pretenso líder mundial que se apresenta como paladino da democracia mas valida a fancaria eleitoral armada por Nicolás Maduro também é um hipócrita.

Mas, excetuados casos como os citados acima (que, o leitor já sacou, são um caso só), seletividade não é necessariamente sinônimo de hipocrisia. Há muito sofrimento no mundo, e incontáveis boas causas a defender. É preciso escolher nossas batalhas. Sim, isso é um lugar comum, mas de vez em quando há sabedoria no lugar comum. De resto, a pergunta “por que você critica X e silencia sobre Y?” também se tornou um lugar-comum. Pior do que isso, virou um cacoete da guerra ideológica em suas modalidades mais estúpidas. Pode ter certeza: o militante hidrofóbico que levanta o dedo na cara do contendor para dizer “você ataca Fidel mas passa o pano para Pinochet” é o mesmo que passa o pano para Fidel mas ataca Pinochet. E vice-versa.

O jovem comuna que levantou o cartaz acusando Snyder de indignação seletiva é desonesto. Ele não está revoltado porque o historiador não critica Benjamin Netanyahu: o que ele não admite é que Snyder critique Vladimir Putin e sua ambição imperialista de reconquistar para a Rússia os territórios que foram da União Soviética. Os comunistas, quem diria, estão alinhados com os republicanos trumpistas que desejam encerrar a ajuda americana à Ucrânia.

O consolo é que essa gente nunca fará a revolução. Protesto minguado em sala de aula é, convenhamos, coisa de pequeno burguês. O desprezo que Lenin não teria por essa gentinha patética!

Eu também os desprezo, sim. Mas o meu desprezo nunca matou ninguém.

 

Jerônimo Teixeira é jornalista e escritor

 

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  1. REVOLTANTE (eu queria escrever mais, só que a indignação não me permite fazê-lo em menos de uma página).

  2. Estima-se que Stalin provocou a morte de 20 milhões de pessoas. Milhões de cidadãos soviéticos por causa da sua paranóia com possíveis opositores. Matou 5 milhões de ucranianos na tragédia do Holodomor. Milhões de prisioneiros de guerra, etc etc

  3. Defender Stalin em 2024 é coisa de lunático ou cafajeste, não há volta a dar. Paradoxal e curioso é que cada vez seja mais frequente os cerceamentos à liberdade de expressão e à diversidade de pensamento ocorrerem justamente dentro de universidades.

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