Ricardo André Frantz via Wikimedia CommonsMenos conhecida que a cultura do nosso litoral, é a cultura interiorana do Brasil

De Ouro Preto a Brasília

Sobre uma cidade colonial feita pelo caminho das mulas e uma cidade moderna desbravada pelos trabalhadores e pelas máquinas
15.03.24

Tradicionalmente, a imagem do Brasil, ou sua identidade cultural, esteve ligada ao litoral: especialmente à antiga capital, o Rio de Janeiro – sede dos cartões-postais e cenário da música brasileira que o mundo conhece. Menos conhecida, porém, é a cultura interiorana do Brasil, cenário de lutas seculares, do desbravamento colonizador e de uma religiosidade bastante original em sua expressão artística. Nesse contexto, Ouro Preto e as cidades do entorno são um verdadeiro centro irradiador.

Só Brasília viria a ser, à sua maneira e séculos depois, outro centro irradiador de cultura, consagrando o modernismo brasileiro e tendo aqui um último grande suspiro do modernismo no mundo.

Tanto Ouro Preto como Brasília foram, à sua maneira, lugares que atraíram rapidamente migração em massa que se instalou precariamente, tiveram seus mitos fundadores, foram marcadas pelo desenvolvimento tardio de um estilo originário da Europa e povoaram, em épocas distintas, o interior do Brasil. Por outro lado, se opõem diametralmente: uma cidade colonial feita pelo caminho das mulas (que carregavam o ouro), outra cidade moderna desbravada pelos trabalhadores e pelas máquinas, com um plano claro e objetivo, saído do projeto de um só homem – Lucio Costa.

Há um comentário feito pelo escritor Aldous Huxley (autor do livro Admirável Mundo Novo), na ocasião da construção de Brasília: “Vim de Ouro Preto para Brasília. Que jornada dramática através do tempo e da história! Uma jornada de ontem para o amanhã, do que terminou para o que vai começar, das velhas realizações para as novas promessas”. 

Lucio Costa, autor do projeto de Brasília, foi também um estudioso da arquitetura barroca brasileira, considerada por ele como a gênese da arquitetura nacional. O próprio discurso modernista teve vínculo indissociável com a arquitetura colonial. Para ele, Ouro Preto é a mais interessante das cidades brasileiras, e chegou a visitar o sul da Alemanha para conhecer as igrejas barrocas entre o Danúbio e os Alpes, que, segundo ele, se assemelham esteticamente às de Aleijadinho.

No texto Aleijadinho e a arquitetura tradicional, Lucio Costa escreveu: “É aí que a gente vê, mesmo sem saber nada de história, só olhando a sua arquitetura antiga, que o Brasil, apesar de sua extensão, diferenças locais e outras complicações, tinha que ser mesmo uma coisa só. Mal ou bem, foi modelado de uma só vez, pelo mesmo espírito e uma só mão”. No projeto de Brasília, Lucio Costa cita o período colonial: “Trata-se de um ato deliberado de posse, de um gesto de sentido ainda desbravador, nos moldes da tradição colonial”.

O arquiteto Francisco Lauande, no seu artigo sobre a Igrejinha de Oscar Niemeyer, demonstrou o parentesco estético entre a obra do arquiteto carioca e a arquitetura barroca brasileira, especialmente de Aleijadinho. Diz ele: “A Igrejinha é talvez a interpretação mais evidente do barroco brasileiro de Minas, em Brasília”. O próprio Oscar Niemeyer escreveu que os palácios de Brasília por ele projetados tinham uma “ligação com a velha arquitetura colonial”, na “intenção plástica”, no “amor pela curva” e “pelas formas ricas e apuradas”.

O comentário de Huxley foi feito num telegrama enviado a Juscelino Kubistchek, mineiro de Diamantina e responsável pela construção de Brasília. Foi o próprio Juscelino, aliás, que convidou Oscar Niemeyer, então um jovem arquiteto, para projetar as obras da Pampulha, em Belo Horizonte. O caminho de Minas a Brasília, então, é repleto de linhas de convergência.

Existe o caminho feito pelos artistas, também. Quando ainda estudante, o cineasta Joaquim Pedro de Andrade realizou um curta-metragem em 16mm em parceria com um amigo e, a pedido dele, o mostrou para o pai. Este, ao fim da breve exibição, olhou para um e para outro, levantou-se e foi embora, sem dizer palavra. “Nós somos uns merdas, Joaquim”, concluiu o amigo.

O pai era Rodrigo Melo Franco de Andrade, intelectual da geração modernista e criador do Serviço do Patrimônio Histórico Nacional, hoje Iphan, durante o ministério de Gustavo Capanema. Foi ele que indicou Lucio Costa para a direção da Escola Nacional de Belas Artes. Era filho de mineiros originários da região de Ouro Preto e seu pai foi biógrafo de Aleijadinho.

Joaquim Pedro voltaria a Ouro Preto para realizar um curta-metragem sobre Aleijadinho, um trabalho aparentemente simplório (com uso de voz em off e imagens das obras do arquiteto/escultor, no estilo próximo ao dos antigos cinejornais), mas, com tal refinamento nos movimentos de câmera, na iluminação e no texto da narração, excepcionalmente bem escrito e sintético, de autoria de Lucio Costa, que o filme se torna uma pequena pérola do cinema documentário nacional. Outro fator que engrandece a obra é a narração do poeta Ferreira Gullar.

 

Josias Teófilo é cineasta, jornalista e escritor

 

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  1. Sinto muito que o turismo nacional seja focado no Rio de Janeiro. A região de Ouro Preto conta muito mais.

  2. Continuando: sim, a arquitetura vernácula de Ouro Preto inspirou os mestres da arquitetura moderna no Brasil, mas é preciso dizer que enquanto em Ouro Preto a cidade foi se desenvolvendo nos limites da paisagem, inclusive usando a vocação natural dos solos para utilização em seus distritos, Brasília se construiu livre, sem limites no planalto contando apenas com a imaginação e criatividade de seus fundadores. Ambas as cidades fazem parte da lista do Patrimônio Cultural da Humanidade da UNESCO!

  3. Excelente. Que curioso como os diferentes personagens do texto (e da nossa arte) se entrecruzam sem parar, provindo de pontos em comum).

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