ReproduçãoO procurador aposentado: "A política usou do crime para se financiar"

Carlos Fernando Lima: “A Lava Jato queria dar um caráter mais justo para a democracia”

14.03.24

O procurador aposentado Carlos Fernando Lima foi um dos mais experientes integrantes da operação Lava Jato, em Curitiba. Até 2022, também foi colunista da revista Crusoé. Nesta semana, após dar uma entrevista ao jornal Estadão em que dizia que Lula deveria estar na cadeia, ele foi alvo de uma nota da Secretaria de Comunicação da Presidência, a Secom. O texto oficial dizia que Lima estava em busca de fama e de objetivos políticos, além de afirmar que a Lava Jato, que dia 17 completa dez anos, causou danos para a economia e para a democracia. Em entrevista para Crusoé, ele fala do legado da operação e se defende das acusações.

 

Dez anos depois, qual é o legado da Lava Jato?
Nossa maior contribuição foi a informação que nós demos para a população. Com base em fatos, e não em achismos, nós mostramos que boa parte da política brasileira é financiada com dinheiro público. Isso se dá de forma ilícita, por meio da corrupção, e de formas pretensamente lícitas, como as emendas secretas do Orçamento. Essa é uma realidade que não se coloca em dúvida no país. Agora, todos nós sabemos que a política brasileira funciona assim. Eles podem tentar destruir as reputações dos envolvidos na Lava Jato ou a esperança que ela gerou nas pessoas, mas não conseguem se contrapor aos fatos, que continuam aí para quem quiser ver, basta olhar na internet.

Então a Lava Jato teve um legado educacional, certo?
Se a população brasileira quiser votar em políticos que cometeram crimes, ela pode fazer isso, mas será de maneira consciente. Não será por falta de informações.

Como está hoje o combate à corrupção?
A Lava Jato deu um bom motivo para que as empresas não aceitem entrar em projetos corruptos. Mesmo com todas as dificuldades, as companhias estão mais preparadas para dizer não a propostas indecorosas. Elas sabem que o custo de ser descoberto em um projeto corrupto é muito alto. No setor privado, portanto, a Lava Jato tem ajudado na prevenção da corrupção. Agora, falando do Ministério Público e da Polícia Federal, acredito que desde o governo de Jair Bolsonaro deflagrou-se uma série de ações que atrapalham o combate à corrupção. Medidas tomadas pelo Legislativo passaram a dificultar as ações usadas na Lava Jato, mesmo que essas tenham sido condizentes com o que há de mais avançado em todo o mundo. Nós fomos premiados internacionalmente em vários momentos porque estávamos indo além do bê-á-bá. No entanto, vejo uma intimidação muito grande do setor público. Juízes e procuradores foram processados administrativamente. Isso tem um efeito perverso. Uma mensagem está sendo enviada para essas classes falando que eles podem pegar o pé sujo da periferia, o viciado em drogas do Centro de São Paulo, mas não podem mexer com os poderosos. A política usou do crime para se financiar, e agora quer dizer que os poderosos não devem ser incomodados. Um promotor pode processar um corretor de imóveis, uma dona de casa, um motorista de caminhão, um aposentado, mas nunca um dos poderosos, que mandam no país. Então acho que vai ser muito difícil a gente ter no Brasil uma nova operação que tenha um décimo do tamanho da Lava Jato.

Uma pesquisa da Quaest mostrou que 42% dos brasileiros acreditam que a Lava Jato acabou por pressão dos políticos. O sr. concorda?
É evidente que a Lava Jato acabou por pressão dos políticos. O começo de tudo foi o dia da queda do avião da Chapecoense (28 de novembro de 2016), quando o Rodrigo Maia, então presidente da Câmara dos Deputados, aproveitou-se do acidente para destruir o projeto das Dez Medidas contra a Corrupção. A partir daí, os políticos perceberam que a população estava cansada, inerte, incapaz de reagir às decisões deles. Então, eles foram picotando a operação com decisões jurídicas e legislativas. Teve muito trabalho que não pôde ser feito por pressão da classe política.

Tanto políticos da esquerda quanto da direita se uniram contra a Lava Jato?
A ideia de que a Lava Jato era uma investigação contra o PT caiu há muito tempo. As diversas operações envolveram o PSDB de São Paulo, o MDB do Rio de Janeiro e governos municipais do país inteiro. Depois, ficou claro que todos os grandes partidos se utilizavam desse esquema de corrupção, que vinha desde a Proclamação da República, e que tem a ver com a ideia de apropriação do público pelo privado. Políticos de toda a gama de interesses se uniram contra a operação, porque a Lava Jato não tinha nenhuma propensão para escolher os seus alvos. Era a maturidade das investigações que definia os alvos. Quando havia um inquérito e um fato se comprovava de maneira suficiente, fazia-se uma denúncia. Isso se deu com todos os políticos mais relevantes do país. É por isso que eles se uniram contra a operação.

O PT, no entanto, é o partido que tem os casos mais vistosos. Agora, apesar de terem sido acusados pela Lava Jato, Lula foi eleito presidente e José Dirceu está ensaiando uma volta para a política. Se a operação ainda estivesse de pé, essas coisas estariam acontecendo?
Não é do interesse que uma operação como a Lava Jato se prolongue por muito tempo. Quem deve se manter no tempo é a instituição do Ministério Público. Mas eu acho que, se nós tivéssemos continuado por mais tempo, poderia ter acontecido uma mudança no sistema político. O problema do Brasil não é a corrupção em si, mas a necessidade pantagruélica do sistema político por dinheiro. É a fome de dinheiro, que se revela até hoje. Veja a briga pelo controle das estatais que está ocorrendo agora entre o Congresso e a Presidência da República. Nós pagamos para sustentar essa classe política, e isso precisava ser mudado.

Em uma entrevista ao jornal Estadão, o sr. disse que Lula deveria estar preso. A Secretaria de Comunicação da Presidência, Secom, reagiu publicando uma nota. O sr. mantém a sua posição?
Mantenho, porque a prisão de Lula foi uma decorrência das investigações da Lava Jato, que ofereceu as acusações à Justiça. O presidente foi condenado em primeira e segunda instâncias. Então, no nível dos fatos, elas já estavam transitadas em julgado. Em relação ao fato criminoso e à sua autoria, isso já estava consolidado e não poderia ser mudado nos tribunais superiores. Esse fato, por si, já poderia levar, segundo a jurisprudência antiga, ao início da execução da pena. Então, a lógica é que ele deveria estar preso.

Na nota da Secom, assinada pelo secretário de imprensa José Chrispiniano, afirma-se que a Lava Jato promoveu “danos para a economia”. O que o sr. acha disso?
Essa é uma visão interessante: você rouba e, se alguém descobre, você reclama. As pessoas se envolveram em um projeto de corrupção, que favoreceu muitas pessoas, indevidamente. Essas empreiteiras ganharam muito dinheiro não só em cima da população, mas também em cima de outras empreiteiras menores, que talvez tivessem projetos e métodos produtivos melhores. Essas outras firmas foram discriminadas de todo o processo por causa da corrupção. Quem prejudicou a economia, portanto, não fomos nós, mas quem usou a corrupção como método de fazer política ou de fazer negócio. Esperar que a gente passe a mão na cabeça deles para dizer “coitadinho, eles fizeram bem para o país”, aí isso não é tarefa do Ministério Público. O MP não vai escolher passar a mão na cabeça de um político porque ele está tentando supostamente fazer o bem ou na cabeça de um meliante da periferia que está assaltando alguém ou roubando uma carteira. O MP deve tratar os casos de acordo com a sua importância, e eu tenho certeza de que o meliante da periferia é menos prejudicial para a economia do que usar a corrupção como método de fazer política e de fazer negócios. Os países mais desenvolvidos do mundo são aqueles que têm os menores índices de corrupção, e não o contrário.

Nessa mesma nota da Secom, Chrispiniano diz que a Lava Jato prejudicou a democracia.
Não vejo como isso possa ter ocorrido. A operação estava querendo investigar e talvez propor regulamentações para evitar a corrupção. A Lava Jato queria dar um caráter mais justo para a nossa democracia. Quem rouba tem muito mais chance de ser eleito, porque faz campanhas melhores e mais caras, do que aquele candidato que não rouba. Sendo assim, o poder econômico desestabiliza o processo democrático.  A Lava Jato buscou estabelecer a igualdade no campo de jogo. É como se em uma partida aqueles que têm dinheiro jogassem morro abaixo, enquanto os que não têm jogassem morro acima. Fica mais fácil quem tem dinheiro marcar um gol. Se há dinheiro ilícito, então fica ainda mais fácil ganhar a partida.

A Secom também diz que o sr. está em busca de fama e que tem objetivos políticos. O sr. pretende entrar na política?
Essa é uma pergunta meio antiga. Se eu quisesse fazer isso, eu já teria feito. Poderia ter feito durante a Lava Jato ou depois que me aposentei. Poderia ter feito isso sem nenhum tipo de óbice. Entretanto, eu optei por uma carreira privada, na advocacia de compliance, baseada na minha história pessoal, em conformidade com o meu passado. Cinco anos depois de me aposentar, é estranho alguém me acusar de querer entrar na política. Eu nunca fui de nenhum partido político e, mesmo depois de sair do Ministério Público não entrei em partido algum. É aquele mesmo argumento que Nicolás Sarkozy usou na França, que Donald Trump usou nos Estados Unidos, que os políticos italianos usaram na época da operação Mãos Limpas, de que os objetivos dos procuradores são sempre políticos. Não é isso. O intuito de um procurador é sempre o de fazer o seu trabalho e ganhar o seu salário, o qual não é nenhuma extravagância, mas que vale o esforço todo contra a corrupção. Hoje em dia não vale mais a pena, por valor algum, porque o procurador sofre o risco de perder a carreira e a reputação. Mas, naquela época, a gente ainda acreditava que havia um Ministério Público totalmente independente.

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  1. Muito bem colocado, políticos querem dinheiro, todos os partidos. Podem acabar com estatais, ministério, secretarias e etc. Mas existirá políticos corruptos. Reforma política que termine com a reeleição. Para todos os cargos, desde do presidente ao vereadores. Terminar, políticos serem servidos pela população, aonde os mesmos deveriam era servi ao povo que elegeram.

  2. Sr Carlos Fernando Lima, sempre acompanho suas colocações, e sinto como Brasileiro um grande orgulho de ter uma pessoa como o Senhor como Brasileiro, cidadão digno e honrado! Muito obrigado por seu trabalho na lava jato!!

  3. Com o domínio quase total dos criminosos de todos os naipes no comando da nação, dificilmente haverá uma nova LJ. O crime organizado, os políticos corruptos e os criminosos em geral, detêm poder suficiente para abortar qualquer tentativa nesta sentido. Infelizmente estamos sem saída...

  4. Obrigada Crusoé por essa entrevista com Carlos Fernando LIma.. saudades de gente decente como ele! É um "espelho" a ser visto e "ouvido".

  5. Fico só imaginando quão fundo a LAVA-JATO poderia chegar se os ladrões não tivessem tento poder. Difícil de estimar, até porque aqueles que estavam presos já estão novamente aplicando seus golpes.

  6. Após meus aplausos ao nobre procurador, minha opinião: Dos milhares de artigos, críticas e opiniões sobre a Lava Jato e a Lava Lula, resta-me uma certeza "Num pais governado por bandidos, com certeza o crime compensa"

    1. Todos os brasileiros deveriam prestar homenagens a este nobre procurador. Excelente entrevista!

  7. A Lava Jato nivelou por baixo a politica no País , mostrando a maneira suja de comando dos principais caciques, que se uniram pra descriminalizar a politica e hoje usam de subterfugios como o orçamento secreto pra se apoderar do erário. Vale lembrar que as obras com corrupção tambem geram ineficiência e são, geralmente , de má qualidade. Saudades da Lava Jato

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