Ricardo Stuckert / PR via FlickrO presidente não protestou contra a inelegibilidade de María Corina nem repreendeu Maduro por ameaçar invadir a Guiana

Não basta ser contra Bolsonaro para ser democrata

Lula interrompeu processo de autocratização iniciado pelo antecessor. Mas engana-se quem pensa que o petista é democrata liberal
15.03.24

Lula não assinou a carta em repúdio às prisões arbitrárias na Venezuela, não protestou contra a trapaça da inelegibilidade de María Corina, não repreendeu Maduro por ameaçar invadir e anexar a Guiana. Espantosamente, em vez de pressionar Maduro para que realize eleições democráticas, o chefe do governo brasileiro foi na linha de pressionar Corina para que ela retire sua candidatura. É um absurdo, mas foi o que ele fez.

Não foi só isso. Lula demorou para comentar o assassinato do opositor de Putin, Alexei Navalny, e quando o fez disse que era preciso esperar um laudo dos legistas da ditadura russa. Em seguida, ele prometeu apoio moral e financeiro às ditaduras africanas e anunciou que vai aumentar o envio de recursos para a UNRWA (a tal agência para refugiados palestinos de meados do século passado e que hoje serve como aparelho do Hamas). Não contente com tantos desatinos, Lula comparou Israel à Alemanha nazista e disse que a autodefesa de Israel contra os atos terroristas do Hamas é semelhante ao Holocausto.

Convenhamos, são muitos “improvisos”, muitos “escorregões”, muitos “deslizes”. E não é só retórica. Não! São atos concretos. Como registrou Demétrio Magnoli, em artigo do início deste mês em O Globo, “o Brasil aumentou radicalmente seu intercâmbio com a Rússia desde a invasão da Ucrânia. O crescimento apoiou-se especialmente nas importações de petróleo, diesel e fertilizantes. As importações de diesel saltaram de 101 mil toneladas em 2022 para 6,1 milhões em 2023 — ou, em valores, de 95 milhões de dólares para 4,5 bilhões de dólares. No cenário do embargo europeu, o Brasil converteu-se no terceiro maior importador de hidrocarbonetos russos, atrás apenas da China e da Turquia”. Em outras palavras, o governo Lula, voluntariamente, sabotou as sanções internacionais dos países democráticos ao proto-império neoczarista de Vladimir Putin.

O fato é que Lula é hoje um dos principais agentes do eixo autocrático composto pelas maiores ditaduras do planeta (cujos três principais expoentes são Rússia, China e Irã – mas que estão articulando um arco maligno onde figuram Coreia do Norte, Turquia, Hungria, dezenas de ditaduras e grupos terroristas do Oriente Médio, da Ásia e da África, até chegar em Cuba, Venezuela e Nicarágua) contra as democracias liberais. Na sua viagem egoica de liderar um recauchutado terceiro-mundismo antiocidente, agora chamado de Sul Global, ele faz (ou não faz) coisas que dificilmente um ditador “clássico” teria a ousadia de fazer (ou deixar de fazer). Que ditador do Oriente Médio, dos quatorze que pontificam por lá, teria coragem de reencarnar Hitler em Gaza?

Já está mais do que demonstrado, por palavras e atos, que Lula não se converteu à democracia. Mas ele, esperto na mistificação, tenta se apropriar do conceito de democracia por duas vias: uma interna, para manter a polarização com Bolsonaro, proclamando-se o restaurador e protetor perpétuo da democracia dentro do Brasil; e outra, externa, para fazer uma reengenharia na ideia de democracia, reduzindo-a a uma noção não democrática de cidadania, ofertada para os pobres pelo líder populista (como vigora na Venezuela). Com isso quer se transformar em campeão da luta mundial contra a desigualdade no mundo.

Mas ele parece não saber que não há democracia alguma sem direitos políticos e liberdades civis. Se Cuba, segundo Lula, foi o país que mais avançou na oferta de cidadania para o povo, mas lá não valem direitos políticos e liberdades civis para os seus cidadãos, então Cuba é uma ditadura e ponto final. Na verdade, todo esse “povo” que vive como clientela em autocracias não é composto por cidadãos e sim por súditos.

Para tentar lavar a imagem de Lula, desgastada por tantos gestos antidemocráticos, dirigentes lulopetistas tentaram fazer propaganda enganosa com o relatório do V-Dem 2024, da Universidade de Gotemburgo, uma das instituições mais reconhecidas internacionalmente que monitoram a democracia no mundo. O relatório do V-Dem destaca, corretamente, o papel da eleição de Lula para reverter o processo de autocratização promovido por Bolsonaro. Seria a prova cabal de que Lula é um grande democrata.

A classificação do V-Dem, contudo, diz respeito a regimes políticos, não a inclinações eventuais de governos. Ela classifica os regimes políticos em quatro tipos: Democracia Liberal, Democracia Eleitoral, Autocracia Eleitoral e Autocracia Fechada. O Brasil é considerado pelo V-Dem uma democracia (apenas) eleitoral, quer dizer, não liberal. Segundo o V-Dem, os Estados Unidos continuaram sendo uma democracia liberal, mesmo durante e depois do governo Trump, que era um populista autoritário e, como tal, adversário da democracia. O Brasil continuou sendo uma democracia eleitoral, mesmo durante e depois do governo Bolsonaro, que também era um populista autoritário, adversário da democracia.

É um fato que, objetivamente, a eleição de Lula — assim como teria feito a de qualquer outro candidato não bolsonarista que disputou com alguma chance em 2022 — interrompeu o processo de autocratização iniciado, mas não consumado, por Bolsonaro. Isso, porém, não significa que Lula, um neopopulista que parasita o nosso regime, seja um democrata e que a democracia eleitoral brasileira tenha virado ou vá virar uma democracia liberal. Não vai. Os indicadores objetivos do próprio V-Dem não permitem. Nem significa que Lula, que está alinhando o Brasil ao eixo autocrático, vai se converter à democracia. Também não vai.

A trajetória de autocratização da democracia brasileira (incluindo o golpismo do governo anterior) seria interrompida se qualquer candidato autêntico tivesse vencido Jair Bolsonaro em 2022. Teria funcionado se desse Ciro Gomes, Simone Tebet ou até Felipe D’Avila e não somente com Lula. Mas apenas ser contra Bolsonaro não dá atestado de democrata para ninguém.

 

Augusto de Franco é escritor

 

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  1. EU NÃO ENTENDO POR QUAL MOTIVO OS EUA AINDA NÃO SANCIONARAM O BRASIL PELO APOIO AS DITADURAS E A AUTOCRACIA RUSSA.

  2. Muito didático esse artigo . Minha tese é de que o Lula, com sua politica externa imprestavel, quer transformar o Brasil na Rússia do Sul, alinhado com os objetivos do Sul Global.

    1. E a culpa é dos seus governantes? Eles chegam lá caídos de paraquedas? Ou será que alçaram tais postos por obra divina? Todos temos que bater no peito e falar o MEA CULPA, MEA CULPA, MEA MAXIMA CULPA. Povo que fica na janela como a Carolina de Chico Buarque de Holanda não tem direito de reclamar, só curtir mais uns 21 anos de ditadura que estão vindos por aí.

  3. Lula não é democrata nem inimigo de ditaduras. Ele apenas odeia a (possível) ditadura bolsonarista porque não teria como fazer parte dela.

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