Facom UFBAA Faculdade de Comunicação da UFBA: histeria identitária

No barraco universitário, a santimônia trans grita mais alto

Um episódio feio na UFBA desvela o caráter dogmático e autoritário do progressismo que se gestou na academia para destruir a liberdade acadêmica
22.09.23

O caso é feio e é grave. Na forma como foi apresentado por alguns sites de notícias, parecia apenas feio: professora da Universidade Federal da Bahia (UFBA) é acusada de transfobia e racismo. Teríamos assim um episódio delicado, mas isolado, e bastaria investigar os fatos e responsabilizar quem porventura devesse ser responsabilizado para conter o estrago.

Há, no entanto, um modo alternativo de resumir a história – por tudo que li a respeito, o modo correto: professora que teve a aula perturbada por aluna trans sofre linchamento moral. Isso é não só feio, mas também grave, muito grave. Longe de se resumir ao descontrole de uma aluna em sala de aula, o episódio baiano nasce de uma cultura que perpassa vários setores da sociedade – imprensa, meios artísticos, empresas, governo – e se manifesta com especial violência e virulência na academia.

O bom leitor já adivinha que falo do progressismo identitário, tema de outros textos desta coluna. Em grande parte produto dos departamentos de Ciências Humanas – daí sua baixa adesão entre o proletariado que a esquerda tradicional tinha como esteio –, essa cultura vem corroendo um valor fundamental das universidades: a liberdade de pensamento. Em The Coddling of the American Mind, Jonathan Haidt, psicólogo, e Greg Lukianoff, advogado e ativista da liberdade acadêmica, fizeram um painel desalentador da censura e do patrulhamento ideológico que se implantou nas universidades americanas – com a conivência covarde de professores e reitores que abraçam os dogmas da militância estudantil. Se algum pesquisador um dia escrever um livro similar sobre a universidade brasileira, o choque entre Liz Reis e Jan Alyne Barbosa Prado merecerá algumas páginas.

Há uma gravação da aula em que se deu a discussão (ou, para ser mais coloquial e mais preciso, em que se armou o barraco). Ouvi uma versão editada desse áudio no site do jornal O Globo. Os fatos que emergem da gritaria são claros. Professora da Faculdade de Comunicação da UFBA, Jan Alyne já ministrava a disciplina de Produção e Circulação de Conteúdo e Mídias Digitais há um mês quando a cantora lírica Liz Reis compareceu à aula pela primeira vez, na terça-feira, dia 12. A recém-chegada quis fazer intervenções na aula – insistia em falar no “ethos midiático” –, mas a professora julgou que ela estava se afastando do tema: “Vamos voltar, senão a gente vai para um hipertexto e não volta mais”, disse. Liz continuou interrompendo a professora. A tensão já estava instalada quando Jan Alyne disse que Liz parecia “chateado”, o que detonou uma diatribe furiosa da aluna trans contra a professora que não a via como mulher.

A professora saiu para buscar um funcionário que a ajudasse a retirar a aluna da sala, e Liz seguiu discursando, com apoio de alguns colegas. Reivindicou o reconhecimento de seu “lugar” de “mulher periférica preta travesti”. Não aceitou sair da sala quando Jan Alyne voltou acompanhado do funcionário. Invocou até um inaudito direito de praticar a coprofagia durante a aula. “Pela pedagogia, a senhora deveria estar acolhendo o meu cocô”, disse à professora, pouco antes de ameaçá-la com um processo por transfobia e racismo. A aula foi suspensa.

Feio, grave.

***

Jan Alyne mais tarde desculpou-se por ter errado o gênero de “chateado”. Tarde demais: a troca de uma letra marcou-a como inimiga da categoria-fetiche do progressismo identitário.

Depois do barraco, discursando em uma manifestação estudantil, Liz denunciou o gênero masculino com que a professora a tratou – e uma voz no meio dos manifestantes prontamente lançou a acusação: “transfóbica!”. Em tempos mais remotos, teria gritado “bruxa!”.

Professor da mesma faculdade onde Jan Alyne leciona, Wilson Gomes, raro intelectual de esquerda que confronta a voragem censória do identitarismo, comentou o episódio no Twitter (ou X). “O lugar mais insalubre para se trabalhar hoje, por razões de envenenamento ideológico, são as universidades”, afirmou. Segundo Gomes, até a “menor reivindicação de hierarquia pedagógica” pode fazer com que o professor seja acusado de “crime identitário”.

“Hierarquia pedagógica” é uma expressão importante aqui. Quando o barraco já pegava fogo em sua sala, Jan Alyne tentou inutilmente afirmar sua posição: “A professora aqui sou eu”. E o professor é a autoridade em sala de aula. É quem determina qual o momento de ouvir em respeitoso silêncio e qual o momento de perguntar e discutir. Isso deveria ser óbvio. No entanto, a autoridade do professor vem sendo desmoralizada tanto pela histeria identitária da esquerda quanto pela truculência populista da direita. Munidas de celulares, as duas bestas ideológicas vigiam e cerceiam a autonomia do docente. A certa altura de seu descontrole verbal, Liz Reis afirmou, em tom de desafio, que iria gravar a aula – tal como fazem os bolsonaristas em sua guerrilha contra os mestres “doutrinadores”.

***

Professor universitário de literatura, Coleman Silk, protagonista de A Marca Humana, de Philip Roth, sela sua desgraça quando está fazendo a chamada. Constatando que certos alunos jamais apareceram na aula, ele pergunta à turma se esses ausentes seriam fantasmas – spooks, em inglês. Ocorre que spook já foi um termo depreciativo para se referir a uma pessoa negra. E os alunos a que ele se referiu como spooks – sem nunca tê-los visto – eram negros. Um simples gracejo bastou para que Silk fosse tido como racista, quando na verdade… Bem, melhor parar antes que eu dê um spoiler.

Há certa semelhança entre o drama de Silk e o barraco na UFBA. Mas recorro à literatura de Roth por outra razão: em A Marca Humana, lançado em 2000, o escritor judeu americano cunhou a epígrafe para o século do cancelamento, do lugar de fala, do privilégio branco e da ancestralidade negra: o “êxtase da santimônia”. A expressão aparece logo no início, em referência ao frenesi moralista que tomou os Estados Unidos em 1998, quando se revelou o que o presidente fazia com a estagiária no Salão Oval. Por bem menos do que Bill Clinton fez, Coleman Silk é perseguido pelos santarrões acadêmicos.

A voz que levantou o barraco na UFBA, a voz que exige atenção total para seu ethos midiático, a voz que grita sobre todas as outras para reclamar que não a ouvem por ser negra e pobre e travesti, a voz que ameaça e que condena – esta é a voz da santimônia em êxtase.

 

Jerônimo Teixeira é jornalista e escritor

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  1. O artigo estava indo bem, até enfiar o tal de "bolsonarimso" no meio. o que tem a ver política (ou corrente) político com essa pauta progressista doentia? outra, não tem nenhum "extremista", muito menos de "de direita" na questão de filmar professor "doutrinador" que é, em si, parte do problema progressista. daí extrai-se a contradição intelectual do artigo que, a um momento apresenta o perigo do progressismo estridente, e no outro lado, lhe faz afago apenas para criticar a corrente política

  2. O politicamente correto, o identitarismo e todas as outras merdas do pensamento regressista de esquerda vão afundar de vez a universidade brasileira. O que era ruim, vai ficar pior.

  3. Esses casos me lembram a história de Juventude Hitlerista. Muitas pessoas tem uma esperança sacrossanta na juventude, mas na verdade os jovens são coaptados por idéias novas muito facilmente e são capazes de fazer coisas terríveis.

    1. Realmente, é uma lástima, essa será a geração que governará o país...

  4. O ambiente universitário foi transformado pelos esquerdopatas em lugar tóxico onde impera a ignorância ilustrada de quem consome recursos públicos para dar vazão às suas mazelas pseudointelectuais. Os identitários são uma praga à parte.

  5. Entendo perfeitamente tudo que você diz. Fui professora universitária por 35 anos (estou aposentada). Ainda bem que em uma universidade particular de grande renome. Mas convivi com professores e alunos de Universidades Públicas e posso dizer que aquele espaço não serve para educar. É uma instituição que deveria ser extinta. Alguns professores lá sofrem como esses citados no artigo acima, mas também está cheio de professores dedicados a falar de democracia, desde que você seja de Esquerda.

  6. È a revolução dos perdedores, a revolta dos desajustados que dentro da sua loucura que todos admirem suas perturbações mentais. Esse papo identitário é irritante e cansativo. Vai se virar contra eles!

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