Pedro Souza / Athletico

O drible de Cuca

Treinador do Athletico Paranaense conseguiu romper a linha de adversários com um drible de corpo, sem nem tocar na bola
15.03.24

“O futebol só pode ser revivido em melhores momentos, editado, enxugado, porque é a expectativa de ver qualquer momento se revelar um desses melhores momentos que leva a gente a transpor seus desertos imensos. Se nós já sabemos quais serão eles, e quando, a seca nos mata de sede”, diz uma das personagens de O drible, de Sérgio Rodrigues. Enxerguei um desses lances na carta lida por Cuca no último fim de semana, após a goleada por 6×0 sobre o Londrina.

Cada um interpreta o lance como pode. Juca Kfouri disse que o treinador do Athletico (ex-Atlético Paranaense), cuja condenação por estupro na Suíça foi anulada recentemente, compreendeu a reação popular ao caso “de maneira tão humilde, tão correta dentro dos limites de cada um de nós, homens, que a única coisa que tenho a dizer é que, de minha parte, o episódio está encerrado”.

Milly Lacombe, que foi citada nominalmente na manifestação de Cuca sobre o caso, destacou o episódio como importante e corajoso. “Quantos podem olhar para trás e ter a coragem de rever erros cometidos contra mulheres? Cuca deu um passo à frente e chamou seus colegas a repensarem ações”, sentenciou, abrindo espaço para tratar Cuca como “aliado” da “luta feminista”.

Já Walter Casagrande Jr. decretou “um dia histórico para o futebol”. “Era isso que faltava, Cuca: você entender a sua importância dentro desse cenário masculino nocivo para as mulheres que existe no futebol”, escreveu o ex-jogador, que considera que Cuca “deu a volta por cima em grande estilo”.

O mais surpreendente é que Cuca conseguiu tudo isso sem nem tocar na bola, como no drible clássico de Pelé no goleiro uruguaio Ladislao Mazurkiewicz na Copa do Mundo de 1970. No lance, que serve de mote para o livro mencionado acima, o camisa 10 da seleção recebe um lançamento e, em vez de dividir a bola com o arqueiro adversário, deixa ela passar. Mazurkievski obviamente não entende nada e fica fora do lance. Pelé, então, corre atrás da bola e, com o baliza aberta, chuta por muito pouco para fora, no gol perdido mais bonito da história.

 

 

Pois bem, o treinador do Athletico não pediu desculpas, nem abordou diretamente a acusação que lhe valeu uma condenação, anulada por ele ter sido condenado à revelia, sem representação legal adequada — um novo julgamento deveria ocorrer, mas o crime de que ele foi acusado já está prescrito, então o caso foi encerrado. Se o discurso não teve nada disso, sobre o que o treinador falou, enfim?

Cuca disse que hoje sabe “que isso não é só sobre mim, mas é sobre mim também”, ecoando Milly Lacombe. “Eu escolhi me recolher durante muito tempo e mesmo assim pude seguir minha vida. Uma mulher que passa por qualquer tipo de violência não consegue seguir com a vida dela sem permanecer machucada. O impacto dura pra sempre”, seguiu, acrescentando que pôde levar a vida “contornando a história porque o mundo do futebol e dos homens em que vivo não tinha me cobrado nada”.

“O mundo do futebol e dos homens”. E quem mais, Cuca? A sociedade, diz o treinador: ”Eu enxergava sim os problemas, inclusive recorrentes aqui no nosso universo do futebol e dos homens. Mas me calei porque a sociedade permite que o homem se cale”.

Segue a imolação: ”Agora eu entendo, mesmo sem ainda conseguir me aprofundar para falar do jeito que seria certo, eu entendo que não posso mais me recolher, ficar calado, porque silêncio soa como covardia. Venho buscando ouvir mais, aprender, compreender. Não posso mudar o passado. Quantos de nós, homens, que agora me escutam, são capazes de olhar o passado e rever atitudes?”.

Ele termina se comprometendo a “fazer parte da transformação” e promete: “O que vocês vão ver de mim daqui para frente não serão palavras, serão atitudes. Podem me cobrar.”

É claro que nem todo mundo ficou satisfeito. A comentarista Ana Thaís Mattos disse o seguinte:Que me desculpem amigos e amigas que ficaram comovidos com a bandeira branca em forma de leitura de papel. Mas histórico para o futebol brasileiro foi a postura de algumas mulheres e alguns homens do jornalismo esportivo, e também de alguns atletas”.

Não gosto do julgamento e da condenação públicos, mas a intransigência de Ana Thaís está mais em harmonia com o clima de caçada da época em que escrevi, em Cuca, o som e a fúria, que o passado nunca morre.

Naquele momento, quando ele foi forçado a deixar o Corinthians após apenas dois jogos, parecia que nunca mais lhe seria permitido voltar a comandar um time grande no Brasil. Ao que parece, contudo, há um forma de matar o passado. Basta se submeter com as palavras certas à condenação pública, mesmo sem admitir ter cometido qualquer crime.

 

Rodolfo Borges é jornalista e coordenador de reportagem em O Antagonista

 

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  1. Ana Thaís é uma hipócrita. Só sabe lacrar. Até a Milly Lacombe, outra lacradora, entendeu que não tinha mais espaço para atacar e recuou.

  2. É hilário. Cuca, perseguido incessantemente pela imprensa por não ter cumprido pena por um crime que, segundo a justiça Suíça, cometeu, é perdoado após humilhação pública (à la Revolução Cultural maoísta) sem ter reconhecido o crime já após ele ter prescrito. Cinismo de um lado e muita burrice do outro. Nem o primeiro está arrependido nem os segundos estavam ofendidos, eles só queriam a humilhação de um apto alvo para a sua revolta. Patético.

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