Com a faca no pescoço
Há dez dias, Arthur Lira fez um duro pronunciamento em que, pela primeira vez, disparou ameaças nada veladas contra o presidente Jair Bolsonaro. Num dos trechos do discurso, depois de cobrar uma mudança de postura do presidente na condução da pandemia, o presidente da Câmara e líder do Centrão não descartou lançar mão de “remédios políticos amargos, alguns fatais”, um claro eufemismo para impeachment. “Estou apertando hoje um sinal amarelo para quem quiser enxergar. É isso ou o colapso”, disse o presidente da Câmara. De lá para cá, a média diária de mortes pelo vírus quase dobrou e não houve nenhum avanço nas negociações internacionais por vacinas. Jair Bolsonaro também não mudou: voltou a provocar aglomerações, a promover tratamentos sem respaldo científico e a exibir sua teimosia atávica ao não usar máscara. Não recebeu, porém, nenhuma nova reprimenda pública do presidente da Câmara.
A repentina – mas apenas momentânea – complacência de Lira e de outros setores do Congresso indignados até dias atrás com Bolsonaro guarda relação direta com o desenrolar das costuras políticas dos últimos dias. Para arrefecer a maior pressão que já enfrentou desde sua posse, o presidente promoveu nesta semana uma minirreforma ministerial em que teve de sucumbir novamente ao apetite do Centrão. Foi como se o bloco de Lira estivesse com a faca espetada no pescoço de Bolsonaro – e, na política, a forma interessa tanto quanto o conteúdo. Aos olhos de todos, menos de uma semana depois das ameaças explícitas, o presidente aceitou mitigar os poderes da ala ideológica do governo, uma exigência dos parlamentares, e ainda entregou ao Centrão a chave do cofre das emendas parlamentares, ficando mais refém do que nunca do grupo que um dia jurou combater.
Sob a gestão Bolsonaro, os chefes da ala fisiológica do Congresso, versados na prática de oferecer apoio em troca de verbas e postos estratégicos em governos, quaisquer que sejam os governos, vivem agora o melhor dos mundos. Graças à trágica administração da pandemia, o Centrão pode amealhar mais e mais poder com uma moldura nobre: ameaça a pretexto de cobrar soluções mais eficazes no combate à pandemia e na gestão da política externa do governo, por exemplo, e ganha o que quer. A investida inicial foi bem-sucedida, mas a ideia é ocupar ainda mais espaços. Essa foi só mais uma fatura. A lógica, nesse caso, é perversa para um presidente frágil, como está Bolsonaro hoje: quanto mais fraco ele ficar, mais salgada ficará a conta.
As trocas no ministério anunciadas na última segunda-feira, 29, trouxeram novidades para o comando de seis pastas, com a chegada de três novos integrantes ao primeiro escalão do governo. Quem puxou a fila das demissões foi o chanceler Ernesto Araújo. O último dos ministros olavistas já balançava no cargo por uma sequência de barbeiragens na condução do Itamaraty, como as trapalhadas nas negociações pela aquisição das vacinas, mas caiu em desgraça mesmo no Planalto depois que resolveu bater de frente com o Congresso. Em situações normais de temperatura e pressão, Ernesto permaneceria no posto. Em tempos de deterioração da imagem do presidente e com um governo claudicante, Bolsonaro achou prudente não entrar em bola dividida. Para a vaga de Ernesto, o presidente convergiu as conveniências dele próprio com as do Centrão: nomeou Carlos Alberto França, ex-assessor do gabinete pessoal da Presidência da República. França recebeu o apoio de parlamentares por apresentar um perfil menos espalhafatoso e mais pragmático para comandar o Itamaraty.
A principal indicação com DNA do Centrão, no entanto, foi a da deputada Flávia Arruda, escolhida para gerenciar o balcão do toma lá dá cá como ministra da Secretaria de Governo. Mulher do ínclito ex-governador do Distrito Federal José Roberto Arruda – ele mesmo – Flávia é uma nomeação com todas as digitais de Arthur Lira. Para o Centrão, ela é a pessoa certa no lugar certo. Subserviente ao grupo responsável por sua ascensão ao posto, Flávia terá a tarefa de despachar – não sem o aval do próprio Lira e de seus outros apoiadores – as liberações de emendas parlamentares, por exemplo. “A reforma foi uma acomodação política. No conjunto, foi um bom movimento do presidente”, diz Ricardo Barros, líder do governo na Câmara e também integrante do Centrão. “O presidente procurou reforçar os laços com o Congresso no momento em que experimenta o maior desgaste do seu governo e da sua imagem. Resolveu apostar tudo na política de coalizão”, afirma o deputado Efraim Filho, líder do DEM.
Para além da catastrófica condução da pandemia, a volta do petista ao cenário político depois da decisão do ministro Edson Fachin de anular todas as suas condenações, é outro fator que tem contribuído para o empoderamento do Centrão. Durante as negociações por mais espaço no governo, Bolsonaro foi alertado por auxiliares de que os partidos do bloco poderiam se bandear para o lado do petista caso não tivessem suas demandas atendidas. O efeito Lula, portanto, ajudou o cacifá-los, mesmo que nenhum acerto esteja garantido por ora.
A visível rendição aos interesses do Centrão obrigou Bolsonaro a fazer um movimento brusco durante as mudanças na Esplanada para tentar mostrar quem manda. Nesse caso, vale o senso comum: se o presidente ou qualquer superior hierárquico precisa mostrar que manda é porque já não manda tanto assim. A autoafirmação de Bolsonaro na minirreforma ministerial veio com o reforço de seu controle sobre áreas consideradas estratégicas, como os ministérios da Defesa, da Justiça e a Advocacia-Geral da União.
A intervenção na Defesa teve circunstâncias mais complexas, com a saída de Fernando Azevedo e Silva, a quem coube apagar incêndios com o STF e o Congresso. Azevedo resistia às pressões de Bolsonaro para que as Forças Armadas se mostrassem mais alinhadas politicamente ao governo. Em seu lugar, entrou o general Braga Netto, até então ministro da Casa Civil. A troca provocou uma crise militar sem precedentes desde a redemocratização e levou à saída, de uma só vez, dos comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica. Para o posto de Braga Netto na Casa Civil foi o também general da reserva Luiz Eduardo Ramos, que comandava a Secretaria de Governo, aquela entregue ao Centrão. Ramos é considerado um tarefeiro de primeira linha e, por ser mais político do que Braga Netto, atende também aos interesses dos parlamentares no Congresso.
A situação de dependência quase que total de Bolsonaro em relação ao Centrão pode trazer problemas sérios para o governo no curtíssimo prazo. O presidente sofrerá nas próximas semanas uma nova rodada de pressões que colocará em lados opostos seus aliados no Congresso e a equipe econômica. Desde a aprovação do orçamento de 2021 pelo Congresso, houve alertas de que as despesas fixadas no projeto ficaram subestimadas, ou seja, o texto prevê menos gastos em rubricas como a Previdência do que a realidade. Com isso, deputados e senadores conseguiram espaço para elevar em 26 bilhões de reais os gastos com emendas parlamentares – um presentão às vésperas de ano eleitoral. O remanejamento, é claro, contou com o apoio da base governista. Depois da repercussão negativa da contabilidade criativa promovida pelo Congresso, o relator do orçamento, Márcio Bittar, do MDB, mandou ofício a Bolsonaro comunicando a intenção de cancelar 10 bilhões de reais em emendas. Abrir mão de parte dos recursos, entretanto, não será suficiente: o presidente já foi alertado de que terá que promover um corte ainda mais profundo nas emendas, sob o risco de ter suas contas rejeitadas. Isso abriria caminho até mesmo para um eventual impeachment, com a caracterização de crime de responsabilidade. Apesar da gravidade do risco, o Centrão, por meio de Arthur Lira, pressiona para que o presidente não reduza a dinheirama destinada às obras carimbadas pelos parlamentares. Do outro lado, está o ministro da Economia, Paulo Guedes, que recomenda o veto. A interlocutores, Lira diz que Guedes quer fazer “terrorismo”. O ministro, no entanto, insiste que não quer subscrever um crime de responsabilidade. Se perder a disputa, Paulo Guedes não descarta deixar o governo.
A vulnerabilidade atual de Bolsonaro é uma crônica anunciada. Em março de 2019, apenas três meses depois da posse, Crusoé mostrou em uma reportagem de capa como o Congresso já exibia os dentes para o novo governo. De lá para cá, os parlamentares, em especial, os associados ao Centrão, só ampliaram o seu quinhão, aproveitando-se dos momentos de debilidade do governo, que se acentuaram a partir da prisão de Fabrício Queiroz, em junho de 2020, e chegaram ao ápice com a escalada de mortes em decorrência do agravamento da pandemia. Por isso, hoje, Bolsonaro é um presidente com uma faca permanentemente apontada para seu pescoço. “Um governo que não tem coalizão estável, não tem um programa claro, um projeto de país, ficará sempre refém da conjuntura do momento” avalia o cientista político Bruno Bolognesi, do Laboratório de Partidos e Sistemas Partidários da Universidade Federal do Paraná. “Bolsonaro não aprendeu com os erros do PT, mas deveria”, diz Bolognesi. Depende, claro, do ponto de vista. Em muitos aspectos, Bolsonaro copia o PT. E, embora com o sinal trocado, copia tão bem que corre o risco de amargar o mesmo destino.
Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.