TV Globo/ ReproduçãoX pode, mas Y não pode: esse tipo de raciocínio tornou-se um cacoete da conversa política atual

Desculpem, fiéis: ofensa à religião não justifica censura

Você pode reprovar a peça com Jesus trans ou a canção que associa o islã ao terrorismo, mas nem por isso pode proibi-las
19.04.24

O leitor de certa idade deve se lembrar de Sérgio von Helder, se não pelo nome, pelo que ele fez.

Outro dia, me lembrei dessa infeliz figura lendo os comentários a um tuíte de André Marsiglia, advogado especialista em liberdade de expressão.

Marsiglia criticou uma sentença da Justiça de São Paulo que mandou o pagodeiro Xande de Pilares “editar” a letra de Me Abraça, canção que compôs em parceria com Ferrugem e que foi acusada de associar o Islã ao terrorismo. Marsiglia fez ótimas considerações sobre a incapacidade contemporânea de “enxergar a arte como uma abstração criativa, não como algo literal”. Poucos comentaristas entenderam. Vários cristãos ficaram indignados porque a Justiça atendia a um pedido de uma tal Associação Nacional de Juristas Islâmicos mas permitia manifestações artísticas que “cospem na cruz”.“Essa arte [i.e., a canção ‘islamofóbica’] não pode, arte contra cristãos pode”, dizia um comentário.

X pode, mas Y não pode: esse tipo de raciocínio tornou-se um cacoete da conversa política atual. É uma tentação compreensível. Não está errado observar, por exemplo, que os elogios de X a ditadores como Putin e Fidel em geral são tratados com mais leniência pela imprensa do que os elogios de Y a ditadores como Putin e Pinochet. Mas será mais honesto criticar a postura antidemocrática tanto de X quanto de Y (não preciso dizer quem eles são…). No comentário ao tuíte de Marsiglia, há ainda uma ambiguidade capciosa: parece até que a intenção é criticar a censura à canção de Xande, mas, por comentários posteriores, tenho a impressão de que na verdade o que se deseja é censurar a tal “arte contra os cristãos”.

Arte contra o islã não pode; contra o cristianismo, pode. Entendo de onde vem esse ressentimento. Certa elite intelectualizada acredita que o islamismo é a religião dos oprimidos e por isso denuncia islamofobia até em marchinha de Carnaval. Essa mesma turma despreza o cristianismo. E trata-se de uma elite com grande influência na academia, nas artes e nos meios de comunicação – daí a impressão de que ela dita o que pode ou não ser dito, cantado, publicado e pintado.

Nos tribunais, porém, a coisa não se dá bem assim. Há juízes “terrivelmente cristãos” espalhados pelas mais variadas instâncias do judiciário, e eles podem ser tão voluntaristas na interpretação da lei quanto seus colegas progressistas que exercem a censura em nome da democracia. Em geral, a censura judicial a alegadas ofensas contra a religião ampara-se no artigo 208 do Código Penal, que torna crime “escarnecer” de alguém por suas crenças e vilipendiar publicamente “ato ou objeto de culto religioso”.

Os casos mais rumorosos desse tipo de censura judicial envolvem os especiais de Natal do Porta dos Fundos. O Jesus estereotipicamente gay de A primeira tentação de Cristo, veiculado pela Netflix em dezembro de 2019, foi considerado ofensivo por muitos religiosos. No início do ano seguinte, um desembargador do Rio de Janeiro determinou que o especial fosse retirado do ar. O Supremo Tribunal Federal (STF) reverteu a decisão um dia depois. O especial esteve legalmente proibido por um dia apenas, mas censura não deixa de ser censura porque é breve.

Artistas que não têm a repercussão midiática do grupo de humor carioca e nem contam com a assessoria jurídica da Netflix têm menos sorte. Em 2017, uma apresentação do monólogo O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu foi judicialmente proibida em Jundiaí, interior de São Paulo. Peças de teatro não são como programas de streaming: ainda que se recorra a instâncias judiciais superiores, a data de apresentação está perdida. Em Goiás, a justiça proibiu a artista Ana Smile de produzir suas simpáticas imagens da Virgem Maria com roupagem pop – de Mulher Gato a Galinha Pintadinha. Ela também foi impedida de divulgar fotos dessas estatuetas. A censura durou por quase dois anos, de maio de 2016 a fevereiro 2018, quando foi revertida.

No fundo, a base para proibir que se escarneça ou vilipendie (para empregar aos verbos do Código Penal) figuras, ideias e símbolos religiosas é a frágil noção de que não se pode “ofender” os fiéis. Mas o sentimento de ofensa é subjetivo e variável em sua extensão: nem todo o muçulmano terá se sentido ofendido por Os versos satânicos, e nem todo muçulmano que se sentiu ofendido pensará que Salman Rushdie deve ser morto.

Outro complicador: o que é blasfêmia para uma religião pode ser dogma para a seita vizinha. O fiel não terá o direito de falar mal da religião que, de sua perspectiva, não segue o caminho, a luz e a verdade?

É por isso que me lembrei de Sérgio von Helder.

Ele é o bispo da Igreja Universal do Reino de Deus que, em 1995, chutou uma imagem da Nossa Senhora Aparecida em um programa da rede Record. A cena causou comoção nacional, e a opinião pública deu conta do recado: o bispo Edir Macedo se viu constrangido a pedir desculpas pelo gesto estúpido de seu subordinado (que anos depois se bandeou para outra igreja). Von Helder, no entanto, acabou condenado na Justiça por vilipêndio a imagem religiosa. Por quê? Que dano a estupidez de um pastor televisivo causou à Santa Madre Igreja?

Por causa de sua iconoclastia bruta, Von Helder se tornou a encarnação da intolerância religiosa, o que é muito justo. Mas na escola católica em que estudei por dois anos, a freira que nos dava aulas de religião dizia coisas bem pouco tolerantes sobre judeus e sobre religiões afrobrasileiras. Isso foi, claro, no distante século 20. Meus filhos não escutaram nada parecido nas escolas católicas por que passaram. Essa mudança não se deu por força do Código Penal, mas porque o tempo atual é mais sensível às diferenças culturais. A afirmação da diferença, é verdade, também tomou a forma da santimônia woke. Assim caminha a história: nem tudo muda para pior, mas nada muda apenas para melhor.

Uma era de maior tolerância talvez ainda surja. Mas só quando resistirmos à tentação de chamar a polícia para impor a tolerância.

 

Jerônimo Teixeira é jornalista e escritor

 

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  1. Perfeito! E esses artistas esquerdopatas não fazem ideia como seus trabalhos estão fazendo mal para a nossa cultura. O Brasil já não é de investir muito em artes, e quando o faz, vira e mexe, aproveita-se de recursos públicos. Eu, por exemplo, não aguento mais ouvir Chico Buarque, Gil, Veloso etc. Se em uma época eles valeram pela afronta à Ditadura Militar hoje eles promovem a Ditadura Bolivariana.

  2. Lembro dos filmes Ave Maria (chatíssimo!) e A Última Tentação de Cristo (ótimo!) pelo auê que causaram. Alalaô-ôôô-ôôô…

  3. O problema é que a pretensão de artistas de esquerda não é fazer arte, mas proselitismo de seu ideário antiocidental, em prol de tudo que possa representar o oposto do que consideram cultura branca, cis, cristã, opressora, europeizada, burguesa etc, aliado à intransigência na defesa dos "oprimidos" e seus valores, numa inversão de preconceitos e intolerâncias.

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