O procurador Frederico Paiva: réus influentes travam a Justiça de Brasília

“Curitiba é um ponto fora da curva”

O procurador da Operação Zelotes diz que a corrupção no Carf continua e nota que a Justiça de Brasília contribui para a impunidade
01.03.19

Com quase doze anos no Ministério Público Federal, o procurador Frederico de Carvalho Paiva dedicou os últimos três anos ao maior caso de sua carreira, a Operação Zelotes. Centrada em Brasília, a investigação começou a partir de indícios da existência de um balcão de venda de decisões no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), uma espécie de tribunal que analisa recursos de pessoas físicas e jurídicas multadas pela Receita Federal. As provas foram surgindo e, com o passar do tempo, estava mapeado um megaesquema de corrupção que só não ganhou mais visibilidade porque os holofotes estavam voltados para a Lava Jato, que corria em paralelo. As levas de material apreendido nas ações de busca, somadas a centenas de mensagens interceptadas com ordem judicial, desvelaram os serviços prestados por uma intrincada rede de lobistas e advogados cujos tentáculos alcançavam até o Congresso Nacional e o Palácio do Planalto. Do tribunal da Receita, seguindo as marcas deixadas por esses mesmos lobistas, a Zelotes descobriria um outro balcão, o da venda de medidas provisórias, e chegaria ao ex-presidente Lula e a seu filho mais novo, Luís Cláudio Lula da Silva, acusados de atuar em favor de empresas do setor automotivo interessadas em favores dos governos do PT. Nesta entrevista a Crusoé, o procurador diz que, a despeito de tudo o que já foi descoberto, o esquema no Carf continua ativo. E expõe um problema que deixa as investigações anticorrupção baseadas em Brasília atrás dos casos tocados, por exemplo, pela Lava Jato em Curitiba: ele diz que, na capital do país, onde se repetem esquemas de desvio e de lavagem de dinheiro, a Justiça é mais lenta e acaba por favorecer réus influentes. A seguir, os principais trechos.

O sr. foi o responsável pela Operação Zelotes desde o começo. Foi difícil descobrir o esquema?
A investigação começou em 2015, com base em uma denúncia anônima que revelou o que muita gente já sabia: que o Carf é um antro de corrupção e tráfico de influência.

Qual é o saldo da operação?
Apesar da pouca estrutura que tivemos, o saldo é muito positivo. Conseguimos propor 20 denúncias contra 113 réus. Dessas 20 denúncias, 19 viraram ações penais. Apenas três, no entanto, foram julgadas. Existem mais três casos para serem julgados, já concluídos para sentença, que são os casos de Bradesco, Safra e Santander.

E qual é a razão dessa lentidão?
Infelizmente, a estrutura da vara onde tramitam os processos é pequena. O doutor Vallisney (refere-se ao juiz Vallisney de Souza Oliveira, titular da 10ª Vara Federal) tem se empenhado, mas ele não é exclusivo para a Zelotes e cuida de vários casos aqui em Brasília, naturalmente onde a gente mais depara com a questão da corrupção e da lavagem de dinheiro. Além disso, notamos uma demora do próprio tribunal (o Tribunal Regional Federal da 1ª Região, que julga os casos em segunda instância). O primeiro caso foi julgado há quase três anos e até hoje o tribunal não apreciou a apelação dos réus. Em razão disso, não há ainda condenação em segunda instância. E hoje não tem ninguém preso por causa da Zelotes, o que é um pouco frustrante. É possível notar que há uma preferência dos advogados por Brasília, em vez de Curitiba, que está vinculada ao Tribunal Regional Federal da 4ª Região (conhecido por ser mais célere e rigoroso).

Isso em outras investigações sobre corrupção, como a Lava Jato, não é?
Sim. Na Lava Jato, há um empenho muito grande das defesas em trazer os casos para Brasília, que continua recebendo muitos deles, até pela relativização da regra do foro que o Supremo decidiu no ano passado e da perda de mandato de alguns investigados que não se reelegeram.

A Corregedoria do Ministério da Fazenda estimou em 50 bilhões de reais os impostos que deixaram de ser arrecadados devido ao esquema no Carf. Como foi possível que esse esquema funcionasse por anos sem qualquer reação?
O Carf é uma estrutura anacrônica e absolutamente sem precedentes. É o único tribunal administrativo composto por advogados. Advogados que, embora se afastem durante três anos para serem conselheiros, obviamente voltarão aos seus escritórios de advocacia, as suas empresas. E eles também são indicados pelas confederações patronais. Não existe em outro lugar no mundo uma estrutura tão suscetível à corrupção como o Carf. É um órgão pouco transparente, onde as questões tramitam durante seis, sete, oito anos. Enquanto isso, o governo não pode cobrar essas dívidas.

“Não existe no mundo uma estrutura tão suscetível à corrupção como o Carf”
O que fazer?
É preciso repensar o Carf. Até hoje recebemos denúncias de corrupção lá dentro. Sabemos que a situação melhorou, obviamente, depois da operação. Mas, passados três anos, voltamos a receber informações de pessoas que estariam ali traficando influência.

São denúncias contra quem?
Não posso dar mais detalhes, pois são casos que ainda estão em apuração, sob sigilo. Mas a impunidade é uma realidade. Notamos a experiência bem-sucedida de Curitiba, os resultados concretos que Curitiba atingiu, mas Curitiba ainda é um ponto fora da curva.

Por que é tão difícil pegar os grandes criminosos do colarinho branco?
Se há impunidade, a tentação é grande. E há muitos interesses econômicos que tramitam aqui em Brasília.

A que o sr. atribui a dificuldade de replicar o modelo de Curitiba em Brasília?
Acho que é o Judiciário como um todo. O exemplo de Curitiba, repito, foi um ponto fora da curva. O combate à corrupção tem que começar nas prefeituras. Há corrupção nos municípios, corrupção nos estados. Só passamos a ver provas concretas de corrupção nos estados com a Lava Jato. Onde estão os Ministérios Públicos estaduais? O caso do Rio é emblemático. O MP estadual do Rio durante pelo menos três ou quatro mandatos não tomou nenhuma medida concreta. As coisas só vieram a aparecer com a Lava Jato do Rio, que também é uma operação bem-sucedida.

Por que a Justiça em Brasília é ainda mais lenta do que no restante do país?
Vemos aqui um congestionamento de processos. Há uma lentidão no julgamento das ações criminais que eu acredito que seja a maior do país. Principalmente quando envolve réus com alto poder aquisitivo, com influência econômica, a demora é muito grande.

“Emendas e MPs eram apresentadas pelas próprias empresas”
Em que medida o pacote anticrime do Moro tende a facilitar o combate à corrupção?
São medidas interessantes, que podem facilitar a persecução dos crimes de colarinho branco — afinal, vieram de uma pessoa que tem experiência na matéria. A única alteração desnecessária é a que diz respeito à polícia. Não há por que ampliar isso. É uma discussão desnecessária e a lei já contempla aqueles casos em que o policial está sob risco. Isso vai gerar uma discussão enorme no Congresso e vai tirar o foco da parte boa do pacote, que é facilitar o combate à corrupção.

Como a experiência da Zelotes pode ser aproveitada na discussão sobre o sistema fiscal no país?
A política de concessão de incentivos fiscais, seja pelo governo federal, seja principalmente pelos governos estaduais, gerou um cipoal tributário em que não há clareza sobre a verdadeira finalidade pública desses estímulos. A quem interessava esses vários benefícios de isenção de ICMS que foram concedidos por estados ao longo dos últimos anos e que hoje estão praticamente todos quebrados? A lição que fica da Zelotes é que o volume de recursos que perdemos para a sonegação fiscal ainda é muito grande. Um boa maneira de estancar a sangria é simplificar a legislação.

Foi por acaso que a Zelotes descobriu um esquema de compra e venda de medidas provisórias?
Chegamos a isso em razão de buscas e apreensões no escritório de um lobista que atuava também no Congresso Nacional. Embora não possamos investigar parlamentares, pela prerrogativa de foro, notamos claramente que várias emendas e MPs eram apresentadas pelas próprias empresas envolvidas. Notamos que a política de desoneração fiscal empreendida pelo governo federal a partir da quebra do banco Lehman Brothers nos EUA atendia também aos interesses econômicos de lobbies que atuavam no Congresso Nacional.

O sr. imaginava que, em algum momento, a investigação chegaria ao ex-presidente Lula?
Não, não era o foco da Zelotes. O foco inicial eram as decisões do Carf e identificamos esse lobista, em especial, que havia feito repasses financeiros vultuosos ao filho do ex-presidente Lula. Tendo em vista as circunstâncias, não podíamos deixar de investigar isso e constatamos ali provas suficientes de tráfico de influência. Essa é a visão do MPF. O caso ainda será julgado, mas conseguimos provar que os motivos alegados pelo filho do ex-presidente para justificar os pagamentos não correspondiam à realidade.

A regulamentação do lobby pode ser uma saída?
É a saída. Ela já se faz necessária há, no mínimo, 20 anos. Há pessoas que usam a condição de lobista para, na verdade, cometer ilícitos penais. A regulamentação não sai porque é conveniente que pessoas mal-intencionadas ajam à margem da lei, defendendo interesses ilegítimos nos subterrâneos de Brasília.

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