Foto: Adriano Machado/CrusoéLira e Lula: a caminho de uma composição

Um país sem oposição

A fome por recursos iguala políticos de vários matizes, faz do Congresso uma geleia geral e deixa o país sem oposição
02.12.22

Num momento em que milhares de inconformados acampam em frente a quartéis pelo Brasil afora, pedindo que as Forças Armadas não deixem Lula assumir a presidência e repetindo slogans como “o ladrão não vai subir a rampa“, dizer que o Brasil não tem oposição pode parecer um absurdo. Mas é isso mesmo: neste momento, o Brasil não tem oposição. Pelo menos, não aquela que ao longo da história tem caracterizado as democracias saudáveis. Quem quiser provas disso, precisa apenas prestar atenção ao debate parlamentar sobre a PEC da Gastança, o tema mais importante neste período de transição entre dois governos.

O PT pôs sua proposta sobre a mesa pouco depois da vitória de Lula nas eleições. O partido quer que as despesas com um Bolsa Família turbinado (600 reais de benefício fixo e um adicional de 150 reais para famílias com crianças de até 6 anos) fiquem fora do teto de gastos pelos próximos quatro anos. Quer ainda uns bilhões extras para cumprir outras promessas de campanha em 2023. No fim das contas, a licença para gastar seria de quase 200 bilhões de reais.

Economistas que costumam participar das discussões públicas reagiram imediatamente. Observaram que essa proposta — por mais necessário que seja ajudar famílias carentes — aumenta a dívida pública e por isso deveria ser limitada no tempo, reduzida ao menor valor possível e ainda vir acompanhada de salvaguardas, como a proposta de uma regra para reduzir o buraco fiscal durante o mandato de Lula ou o anúncio de um ministro da Fazenda que não tenha perfil gastador.

A troca de chumbo aconteceu sobretudo na imprensa. Enquanto isso, as principais lideranças políticas se ocupavam de outras coisas.

O PL, que abrigou Jair Bolsonaro nas eleições e que com sua ajuda elegeu as maiores bancadas da Câmara e do Senado, não formatou uma proposta alternativa à do PT. Em vez de assumir imediatamente a dianteira na oposição, a legenda comandada por Valdemar Costa Neto declarou guerra ao TSE, pedindo que 67 milhões de votos registrados no segundo turno fossem anulados em razão de uma alegada falha nas urnas eletrônicas.

Apoiador de Bolsonaro na corrida pela reeleição e integrante do PP, o outro grande esteio do governismo, o deputado federal Arthur Lira também não gastou saliva para explicar aos eleitores o que está em jogo com a PEC da Gastança. Dedicou-se, em vez disso, a negociar sua recondução à presidência da Câmara, em fevereiro do ano que vem. A urgência do PT em ver aprovados os recursos para o Bolsa Família serviu de arma para que Lira conquistasse o apoio do partido na terça-feira, 29. No dia seguinte, o PL também prometeu estar com Lira na eleição — afinal de contas, se até a esquerda já havia aderido, com uma dúzia de outros partidos, ficar isolado só poderia causar danos.

Coube a dois senadores do PSDB apresentar contrapontos à PEC da Gastança. Tasso Jereissati (CE) e Alessandro Vieira (SE) redigiram projetos que preveem prazos e valores menores para os gastos fora do teto. Ninguém deu muita atenção.

Na primeira metade de seu mandato, antes de se amancebar com Arthur Lira e Ciro Nogueira, Bolsonaro teve enormes dificuldades nas duas casas do Congresso. Quando Rodrigo Maia deixou a presidência da Câmara e foi substituído por Lira, a situação melhorou para o presidente. Em troca de liberdade para operar o orçamento secreto, Lira tranquilizou Bolsonaro quanto aos riscos de um impeachment e ajudou na aprovação de leis que interessavam ao Executivo. No Senado não houve o mesmo progresso. Bolsonaro teve de enfrentar a CPI da Covid, que fez muito para divulgar os erros de seu governo no enfrentamento da pandemia. Viu, além disso, projetos serem engavetados e vetos derrubados pelos senadores. O Senado foi a sua oposição. O mesmo pode se repetir para Lula.

Seremos oposição porque nos diferenciamos em diversas pautas“, diz Carlos Portinho, um dos 14 senadores que comporão a bancada do PL na casa, a partir do ano que vem. “Nós não queremos a revogação da reforma trabalhista, nem a regulação da mídia. Acreditamos em Estado, e eles não. Só esses pontos já nos diferenciam bastante.”

Senadores têm mandatos de oito anos, são três por Estado e dependem menos de currais eleitorais para se eleger. Deputados, se quiserem permanecer em seus cargos, precisam “mostrar serviço” continuamente para suas bases. É aí que mora o perigo.

Os deputados mais velhos e tradicionais costumam dizer que oposição é luxo de rico. Em países pobres, onde o Estado tem um papel muito importante na vida das pessoas, os políticos precisam ficar perto do rei, que distribui esses recursos“, diz o cientista político Leonardo Barreto. “O reinado no Brasil hoje está dividido. Com o orçamento secreto, muitos recursos passaram a ser controlados pelo Congresso, especialmente pelos presidentes da Câmara e do Senado. Mas o governo federal ainda controla coisas importantes, como cargos em todo o país. E os parlamentares precisam ter acesso a essas figuras locais, para poder receber o crédito por obras e serviços que chegam aos seus Estados.”

Adriano Machado/CrusoeAdriano Machado/CrusoeKataguiri, da União, que será ‘independente’: faltam números à oposição
Segundo o deputado federal Kim Kataguiri, que renovou seu mandato pela União Brasil, a oposição na Câmara ficará espremida entre Lira e Lula. “Meu partido vai ficar independente e dar liberdade a quem quiser fazer oposição“, diz ele. “Eu pessoalmente pretendo fazer parte da Comissão de Fiscalização e Controle. Um dos principais papéis da oposição é fiscalizar, convocar os ministros para pedir esclarecimentos, ficar de olho nas estatais, atuar junto ao TCU e ao Ministério Público para investigar indícios de irregularidades. A oposição terá de ficar bastante unida, pois vai ter um espaço bastante diminuto na Câmara, dado o acordo que Lula e Lira fecharam nesta semana.”

É difícil imaginar uma oposição com força suficiente para fazer as placas tectônicas da Câmara se movimentarem, por duas razões: os números e a provável falta de coesão — um dos fatores importantes apontados por Kataguiri.

A federação PSDB-Cidadania vai contar com 18 deputados no ano que vem. Pode tentar se articular com legendas como Podemos (12 deputados) e o Novo (3 deputados). “O Novo vai ser uma oposição ferrenha ao PT“, diz o deputado federal reeleito Gilson Marques. “Vamos fazer o possível para que a PEC da Gastança não seja aprovada e lutar contra as práticas petistas de sempre, como o aparelhamento da máquina pública e a corrupção. Desse governo não virá nada de bom para o Brasil.”

Assim como na União Brasil, pedaços de outros partidos também devem pender para a oposição. Evair Vieira de Melo, do PP, é um deles. “Já comuniquei ao Lira e ao Ciro Nogueira que farei oposição ao governo Lula todos os dias e todas as horas.” Mas essa não é a nota dominante no partido. “O PP não vai deixar de aprovar os projetos de interesse do nosso país e não fará oposição sem critério ou por ideologia“, diz o deputado federal Fausto Pinato, repetindo um dos chavões do Centrão, o de que não se deve fazer oposição “sem critério. Colega de Pinato no PP, o deputado José Nelto tem discurso parecido. “Não tratamos desse assunto ainda internamente na bancada, mas eu tenho minha posição declarada“, diz ele. “Todo governo que toma posse você tem que dar seis meses de oportunidade para ele mostrar seu programa. Então eu vou colaborar, ajudar o Lula na tarefa de unificar a nação.”

Dos 99 deputados eleitos pelo PL, um terço já pertencia à legenda. São políticos profissionais, “pragmáticos“. Dos demais, cerca de 50 são bolsonaristas convictos, ou seja, “ideológicos“. São nomes como Carla Zambelli, Ricardo Salles ou Eduardo Pazzuelo. É certo que farão oposição, mas difícil prever se vão se dedicar ao trabalho cotidiano e muitas vezes cansativo de fiscalizar o governo e desenhar alternativas para os seus projetos, o que os poria na trilha da oposição democrática, ou se vão optar pela lacração contínua, tentando manter vivo o discurso das eleições roubadas e o sonho perverso de uma intervenção militar.

Um dos pais do liberalismo, o inglês John Stuart Mill também refletiu profundamente sobre o papel da oposição em um regime democrático. Segundo ele, a presença da oposição no parlamento — e no debate público de maneira geral — era fundamental, porque ensejava um tipo de competição de ideias em que as mais favoráveis ao bem comum acabariam prevalecendo. Num país com boas instituições, situação e oposição acabariam interagindo mais como competidores leais do que como antagonistas (e certamente não como inimigos).

Não é difícil perceber que nenhuma democracia se aproxima desse modelo ideal. O jogo é sempre mais bruto na prática e muitos cientistas políticos procuraram fazer justiça a esse fato desde o século 19, quando Mill escreveu. Até os mais prontos a reconhecer que a política não é só feita de sentimentos nobres, no entanto, admitem que um limite precisa ser respeitado: quem perdeu eleições e por isso vai passar uma temporada na oposição pode criticar o governo, bloquear suas iniciativas e procurar desgastá-lo como quiser — mas não pode se opor ao sistema político propriamente dito, tentando derrubar as suas regras. Nesse ponto, a oposição deixa de ser leal, ou até mesmo legítima.

Na terça-feira, 30, manifestantes em vigília diante do 6º Batalhão de Comunicações do Exército, em Bento Gonçalves (RS), divulgaram um vídeo e um documento resumindo os seus desejos. O nome já diz muito: “Decreto do Povo de Bento Gonçalves considerando sem serventia o atual Senado Federal, STF e TSE“. Seguem-se cinco artigos, que determinam a destituição do presidente do Senado e de todos os ministros do Supremo, para que sejam substituídos por “nomes submetidos à aprovação do povo“; a invalidação do resultado das eleições e a adoção do voto impresso com contagem pública; e a criação do Dia do Basta, prazo final para o cumprimento desses mandamentos (a data era 1º de dezembro, que já passou).

Esse tipo de demanda quebra aquela regra básica: é preciso preservar o sistema político. É por isso que os manifestantes de Bento Gonçalves não representam propriamente uma oposição — assim como não constituem oposição partidos e parlamentares que lutam para invalidar milhões de votos realizados de boa-fé, para subverter o resultado de uma eleição ou para instituir o seu regime político preferido com o “socorro” do Exército e suas armas.

O Brasil precisará muito de uma oposição aguerrida nos próximos anos, para impedir que a geleia geral do Centrão ocupe todo o Congresso e para se contrapor aos discursos de Lula e do PT, que frequentemente se acham donos da razão e donos da virtude – além de já terem aceitado corrupção e corrompido outros. Essa oposição não precisa ser aquela de Stuart Mill. Mas também não pode ser aquela dos que desejam atropelar a democracia.

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