AlexandreSoares Silva

Pare de rir, Anne Frank

17.09.21

Um navio em alto mar. No porão, escravos estão sendo transportados para o Rio de Janeiro, onde serão vendidos.

Num canto, vemos três crianças tristes e assustadas. Com a passagem dos dias, para tentar vencer o próprio terror elas começam a brincar, falando baixinho para não atrair a ira de ninguém. Em algum momento começam até a se divertir um pouco, pulando corda com as correntes.

Imediatamente três adultos se aproximam. Estão vestidos à moda do século XXI, e estão furiosos.

— Pulando corda com as correntes? Que palhaçada é essa? — diz a primeira pessoa, J.S. (branca), uma cientista social que viajou no tempo e foi parar ali. — Que violência simbólica nefasta é essa?

A segunda viajante do tempo, uma professora de história com ênfase em História do Brasil, História Cultural, Estudos afro-brasileiros, História da moda, História de gênero e Ensino de História, berra:

— Isso é impossível! Os relatos de escravizados mostram que as crianças não brincavam nos navios negreiros. As condições são precárias, muitas pessoas morrem no percurso. Que falta de respeito é essa? Não tem espaço aqui para brincadeiras lúdicas!

— Isso é constrangedor! — diz um doutorando em antropologia pela USP, que também viajou no tempo. — O maior problema, para mim, é a romantização deste período de terror da história do Brasil…

As crianças param de brincar, aterrorizadas com os gritos. Ouvindo o barulho, o feitor se aproxima com um chapéu numa mão e um chicote na outra:

— Esses meninos estão causando problema?

A cena acima, mais ou menos igual, menos as pessoas insuportáveis do nosso século, foi descrita num livro infantil de José Roberto Torero, Abecê da Liberdade, que era publicado e comercializado pela Companhia das Letras.

Era — até o dia em que umas poucas pessoas ficaram escandalizadas com essa cena. Assim que recebeu quatro ou cinco e-mails reclamando dela, a Companhia das Letras, depois de uma brava resistência de aproximadamente 14 segundos, mandou recolher o livro.

Esta edição está fora de mercado e não voltará a ser comercializada”, disse a editora, em nota de 11 de setembro.

Uma reportagem do UOL sobre o caso dá voz a três pessoas indignadas com o livro, e elas são exatamente “J.S., cientista social“, descrita o tempo todo como “(branca)”, mais um mestrando em antropologia pela USP e uma professora de história com “ênfase em História do Brasil, História Cultural, Estudos afro-brasileiros, História da moda, História de gênero e Ensino de História”. E eles falam exatamente essas coisas que os mostrei falando: “violência simbólica”, “não havia espaço ali para brincadeiras lúdicas”, “romantização desse período de terror” etc etc.

A cientista social J.S. (branca) também diz na reportagem: “Eu fiquei me perguntando se passaria pela cabeça de alguém fazer a mesma cena com crianças em Auschwitz, sabe?”. Bom, me perguntei isso também, durante um segundo, e logo pensei no filme A Vida é Bela, como você também deve ter pensado.

Mas também pensei em Anne Frank, autora do famoso diário — a menina judia que riu e brincou enquanto estava escondida dos nazistas, sem ter a polidez de consultar antes mestrandos e cientistas sociais.

O que me levou a imaginar a seguinte cena:

1942. Um apartamento em Amsterdam. A cientista social J.S. (sim, branca) examina o apartamento, enquanto Anne Frank a observa com o coração aos pulos. J.S. para na frente de alguns cartões postais presos na parede e diz:

— O que é isso? Atrizes de cinema? Um pouco frívolo para este momento, não?

Anne Frank, desesperada:

— É do papai! É tudo o que ele tem! Por favor, não tira!

A cientista social J.S. (branca) ergue a mão para arrancar os cartões postais da parede, mas relutantemente deixa que fiquem.

Finalmente chega outra família, os Van Daans, para ficar escondida no mesmo apartamento, e a família de Anne Frank agora tem companhia. No jantar dessa noite, o Sr. Van Daan conta uma história engraçada, e Anne e o resto da família riem bastante. Ainda rindo, Anne Frank começa a descrever a cena no seu diário.

Mas então vê as expressões azedas nos rostos de J.S., do mestrando de antropologia pela USP e da professora de história com ênfase em História do Brasil, História Cultural, Estudos afro-brasileiros, História da moda etc.

— Esse é um momento para rir? — diz J.S. (branca e incrédula).
— Achei uma violência simbólica de uma carga brutal — diz o mestrando pela USP.

Berrando que é preciso parar com a “romantização da perseguição nazista”, a professora de história com ênfase em etc salta e agarra o diário das mãos de Anne Frank, dizendo que vai recolher a obra e que ela nunca mais vai ser comercializada. Nunca mais!

E assim termina a noite, com Anne Frank chorando, e o seu caderno confiscado.

Confesso que sonho acordado com a possibilidade de alguém pegar os três livros mais vendidos da Companhia das Letras, digamos, e encontrar um problema racial ou sexual num deles. Seria interessante se isso acontecesse, só para ver se a editora teria tanta pressa para recolher algum desses livros como teve para recolher o livrinho ingênuo, inofensivo e obviamente bem-intencionado de José Roberto Torero.

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  1. Perfeito. Adorei. E fui professora de História, mestre em História Social (só havia essa na PUC), mas com ênfase na reflexão sobre o que o homem faz para se manter vivo.

  2. A impressão que temos é que é melhor cercear que discutir. Simplificação do pensamento, emburrecimento das pessoas. No final, vamos pensar "apenas o permitido", manada facilmente manipulavel. Uma pena que uma editora de livros concorde com, e facilite este.movimento. Deveria ser o contrário!

  3. Excelente Crônica!!! A hipocrisia da censura está no ar! Basta a crítica de 3 intelectoloides para derrubar um livro! O que seria da excelente editora Cia das Letras se ela sofresse censura por parte de todos os leitores deste país?!

  4. Sabemos que o humor e o brinquedo infantil são importantes fontes de saúde mental, que servem, em circunstâncias adversas, para superar e ressignificar traumas às vezes avassaladores. Uma vaia à JS (branca), à professora de história com ênfase nisso e naquilo e ao doutorando de antropologia, bem como à companhia das letras. Eu recomendaria que fossem mais humanos. Excelente artigo.

  5. Cia. das Letras cagona. Amarelou. Afinou. Abriu as pernas pra militância burra. Tomara que vá à falência pela covardia. Concordo com a solução sugerida por outro leitor abaixo: Torero que digitalize seu livro e venda-o de forma independente. Aí sim, vai bombar, e os militantes vão ficar com cara daquela parte rechonchuda da anatomia que todos têm.

  6. Essa sempre foi a universidade no Brasil, nunca produziu nada de útil e nunca foi condecorada com nada muito menos prêmio Nobel. Um bando corporativo que mama nas tetas do estado vejam sua atitude na pandemia.

  7. Vivemos num mundo polemizado por fatos, ideias, atitudes, comportamento etc. Passou da hora de ser desenvolvido um manual de sobrevivência no mundo do politicamente correto, para maiores de cinquenta anos, porque eu estou me sentindo perdida. Talvez, a mudez possa ser um paliativo.

  8. A realidade é complexa demais pra essas gente. Eles só aguentam duas variáveis: nós e eles, esquerda e direita, certo e errado…

  9. O ser humano é muito resistente e há descrições científicas desses mecanismos como encontramos diversão e calma mesmo em períodos terríveis. Tanto é verdade que brasileiro tá sempre rindo…

  10. Nos campos de concentração haviam casamentos, celebrações de aniversário, brincadeiras, desenhos infantis e brinquedos. As pessoas tendem a buscar preservar os elementos que os fazem humanos e nutrir seus laços diante das tragédias que os acometem. É claro que crianças em porões de navios tentariam brincar, e seria estimuladas e protegidas pelos adultos que por elas tivessem amor ou empatia. Até que surgissem os especialistas para ensinar como se deve portar de acordo com a versão correta.

  11. cada vez mais me da engulhos esse tipo de gente, e o pior é que estão mandando. A Cia das Letras me decepcionou muito. vou repensar a co 9rar de livros delas, e assim agir como eles. 😣😣😣😣😣😣😐😐😐😐

  12. Ainda bem que temos o Alexandre para ficarmos sabendo dessas coisas surreais que acontecem no mundo das letras. Inacreditável!

  13. Que bom ver uma opinião lúcida e sensata de vez em quando. Os pseudo intelectuais andam muito perdidos ultimamente, brigando com estátuas e moinhos de vento

  14. Excelente artigo. Os críticos da obra, ativistas sempre em patrulha por suas ideias, não são capazes de entender o comportamento das crianças e das pessoas bondosas. A maldade, como uma constante, está e nunca sai da cabeça destes três patrulheiros do “politicamente correto”. Perderam eles a capacidade de brincar e rir.

  15. Não consegui comprar o livro do Totero. Ceca & Meça, nem Amazon. Google Play, vou já conferir. Os sebos colocaram-no nas nuvens. Torero, o melhor que faz: assumir o seu autoral, digitalizar e vender o e-book, em papel também. Quero pagar o meu, em papel, não, que não compro mais livros em papel. Vamos divulgar o Torero!

  16. Alexandre, você escreve no mesmo estilo do Mainardi. Outro bom motivo para assinar a revista! Ah, desculpe se achei que ele inspirou você. Sei lá se não foi o contrário. Enfim, parabéns aos dois!

  17. muito bom meu caro, parabéns pela sua lucidez, outro exemplo lúdico nessa linha é o impagável Jojo Rabbit ! para a diretoria da Cia das letras da qual sou fã de carteirinha só mais um comentário: que merda de decisão hein galera! fosse chefe de vocês estariam desempregados...

  18. Impressionante! Dá o que pensar. "Um defeito de cor", um livro estupendo relata aquelas viagens. Menina, desembargada, dançou e sorriu para o seu futuro dono. Não vou estragar contando nada: "Um defeito" excede.

  19. Estou lembrando aqui: esse livro não é sobre a vida do abolicionista Luís Gama? Um intelectual ativo e brilhante, que estudou por conta, comprou a própria liberdade, defendeu e ajudou a libertar dezenas (se não centenas) de cativos e atuou intensamente no abolicionismo? Só recentemente ele vem sendo redescoberto. Está proibido ler e conhecer a respeito dele? Só se pode exaltar e louvar Zumbi dos palmares?

    1. Caraco.. fiquei pasmo.. sou um analfaburro.. mas tenho que confessar, humilde e disciplinadamente.. que diabo significa esse alemanismo? Como é? Zeitgast? Viixeee.. desculpa aí..

  20. Excelente! Eu acrescentaria outra ousadia da parte de Anne Frank: ela não só riu e brincou como ainda NAMOROU! Como pôde? Que falta de sensibilidade!

  21. Excepcional!!! Ensaio magnífico!!! Crianças são capazes de tirar água de pedra...! E dizem cada uma, hein, Prof. Niskier?!

  22. Excelente!!!! Esses intelectualóides são uns chatos de galocha! Parecem robôs repetindo em loop sempre o mesmo roteiro que pretendem ser possível aplicar a tudo e a todos a qualquer momento. Ô gente monótona!!!!!

  23. Que vergonha cia das letras..que vergonha! Esses 3 " mestres" eu diria: vão pra casa descascar batatas...abaixo a burrice da censura de vocês

  24. A insanidade do politicamente correto transforma uma editora de livros em censora. Lamentável a postura da Cia das Letras que tirou um livro de circulação por não ter a capacidade de fazer uma análise sensata como o Alexandre Soares fez em seu texto.

  25. Excelente texto! Qualquer dia não poderemos mais exercitar "o livre pensar é só pensar", do Millôr Fernandes. Teremos de pensar dentro das balizas definidas pelo mestrando em antropologia, pela professora etc.

  26. Ao invés de se queimar livros ( já presenciei ), ou deixar de publicá-los, estes mesmos livros deveriam ser trabalhados por professores em salas de aula. Atualmente, temos uma escravidão mental. Atualmente, esta corrente com seus elos, possui um significado de união, construção, alcançar metas, produtividade.

  27. Chega a ser inacreditáve,l o nível de cretinice desses paladinos do politicamente correto, e também da Cia das letras (o que não é novidade). Daqui a pouco, irão queimar livros, assim como já derrubam estátuas. Parabéns pelo texto, Alexandre!

    1. Escravidão do politicamente correto. Não sabia até 2015 da existência das letras LGTBQ+etc e do seu significado para nosso desenvolvimento "civilizatório". Tive amigos na infância e adolescência, colegas de colégio e funcionários quando tinha empresas, de todas as cores do arco íris ... Via como amigos e funcionários. ... Ditadura da Corrente. ... Estamos correndo o risco de sofrermos cirurgias que limitem ou moldem nosso pensamento. Liberdade de expressão? Nem pensar. Melhor cortar a língua.

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