Projeto de lei das fake news cria ‘departamento de censura’, diz conselheira da OAB

19.07.20 12:21

Censura, vazamento de dados, violação da privacidade. Para a conselheira federal da OAB Sandra Krieger Gonçalves, os brasileiros estarão submetidos a esses riscos caso entre em vigor a versão do projeto de lei das fake news aprovado pelo Senado e que agora terá que passar pelo crivo da Câmara. Sandra Krieger é relatora das discussões que vão embasar um posicionamento da entidade sobre o texto que tramita no Legislativo. A ideia é que o relatório, que passará ainda por votação no plenário do Conselho Federal da Ordem, seja encaminhado à Câmara e que as considerações sejam levadas em conta pelos deputados.

O projeto prevê que as redes sociais passem a coibir a criação de perfis falsos e limitar os disparos em massa de mensagens. O objetivo é inibir a atuação das chamadas milícias digitais, que atuaram nas eleições de 2018 e preocupam as autoridades eleitorais para o pleito municipal de 2020. Da maneira como foi aprovado pelo Senado, porém, o texto cria um conselho de autorregulação das redes sociais e prevê que as empresas armazenem por três meses mensagens privadas dos usuários. Para Sandra Krieger, é justamente aí que está o problema. O texto, diz ela, pode criar uma mordaça nas redes sociais e ainda expor a vida pessoal de usuários que não cometeram crimes. A conselheira da OAB recomenda que o projeto seja totalmente alterado ou mesmo rejeitado pela Câmara. Ela falou a Crusoé sobre o tema:

Quais são os riscos envolvidos na versão atual do projeto?
Não há nenhuma pista, no texto aprovado pelo Senado, do conceito de fake news ou daquilo que é notícia falsa. Não há uma distinção e muito menos deveria haver a possibilidade de estabelecer por lei o que é verdade e o que é mentira. O projeto aprovado no Senado teve por uma expectativa estabelecer controle sobre a questão do disparo automático por meios eletrônicos de mensagens que contenham algum tipo de calúnia. A preocupação inicial é boa. O problema é que para resolver uma distorção que a sociedade hoje vive em torno de notícias que são divulgadas, por robôs ou por pessoas mesmo, em torno de injúria ou de coisas que não refletem a realidade, ele acabou por criar uma maneira de análise de conteúdo. Então, o legislador diz: se a gente não consegue controlar os disparos de notícias em massa para pacificar a avaliação de notícias falsas ou não, a gente vai estabelecer um controle de conteúdo. Aquilo que é veiculado na rede não pode ser objeto de depuração, do que interessa e do que não interessa divulgar, do que é mais preciso em torno de conteúdo e o que não é. Eu fiz até uma analogia com a visão de “1984”, de George Orwell, em que ele diz que o “grande irmão vê tudo” e que há um “ministério da verdade”, que avalia os comportamentos das pessoas.

O projeto aprovado no Senado cria uma espécie de autorregulação nas redes sobre conteúdo falso. É a partir dele que haveria esse “controle”?
Estabelecer esse conselho não é a solução mesmo que ele fosse bem representado pela sociedade. Não vejo razão para a gente entender que qualquer conselho de avaliação de conteúdo possa ser bom. Então, a gente vai ter um representante estatal, um representante da rede, um do jornalismo, mas há um controle censor. Ele estaria estabelecendo políticas de boas práticas mas estaria avaliando conteúdo. Destoa completamente do que a gente imagina de internet, do mundo moderno, de identificação. Isso não tem nada a ver com identificar as pessoas que cometem crimes na rede.

A proposta, então, criaria uma mordaça?
O que o projeto estabelece é que esse controle precisa ser feito pela plataforma (rede social) e, depois, se o conselho entender ele demanda a plataforma. Se a plataforma vai ser responsabilizada por aquele conteúdo que alguém citou, ela vai ter que fazer uma avaliação a cada vez que alguém publica alguma coisa. É um departamento de censura terceirizado para avaliar tudo isso. Quando ele tiver dúvida, vai derrubar a página do indivíduo.

Em que medida o texto abre brechas para violação da privacidade?
O mais problemático desse projeto é estabelecer o que eu chamo de engenharia transversa. Se hoje esse conselho estabelece que aquela informação fraudulenta foi compartilhada por mil pessoas num aplicativo, ele teria condição de avaliar o conteúdo de três meses para trás daquela informação no aplicativo. Como faz isso? Os aplicativos, ou plataformas, terão que manter armazenados por três meses todas as movimentações e conversas das pessoas. Imaginar que vá estar sujeita ao arquivo é muito perigoso, porque pode haver vazamento de dados. Quanto menos se armazenar de dados, menos se controla o usuário, melhor. Resumindo, esse conselho gestor teria algumas finalidades. Uma delas seria estabelecer boas práticas, mas uma outra perigosa é se ele criar algum tipo de prerrogativa estatal de controle de mensagem privada.

Mas, se não for por essa via, qual seria a solução para coibir esses crimes?
Uma das nossas sugestões é que se crie uma Justiça especializada, que seja bastante ágil para determinar a retirada de páginas e o rastreio da informação que seja criminosa. Existe muita diferença entre aquilo que é crime e aquilo que é opinião, e esse crivo tem que ser o crivo da Justiça, não do Poder executivo ou da plataforma.

Muitas vezes, as redes sociais têm se negado a fornecer seus dados para investigações ou ações na esfera civil que buscam responsabilizar detratores. O texto aprovado no Senado prevê que elas mantenham uma sede no Brasil. Isso ajuda em algo?
Infelizmente, não. O fato de a estrutura toda da empresa ser sediada no estrangeiro, de ter uma sede ou não aqui, não vai tornar mais fácil a identificação por si só. Acho que tem que ter mecanismos sim de consequência para a empresa quando a Justiça determina a retirada de uma página. Isso tem que ser mais efetivo. Mas acho que manter uma sede no Brasil não vai mudar muita coisa.

Mais notícias
Assine agora
TOPO