Cocozão de Ponta Grossa via FacebookO "cocozão" de Ponta Grossa, monumento que pegou fogo no Paraná em 2009: O homem precisou de milhões de anos para aprender a fazer coisas feias

O espanto das esquerdas ao encontrar alguém que não são eles

Quando vocês, super-ultra-anti-racistas, vão conseguir conversar com uma pessoa negra normalmente, sem salamaleques, cusparadas nas próprias avozinhas e assim por diante?  
24.05.24

Voltei agora pra casa numa van com duas atrizes, uma branca e uma negra. A branca parecia enormemente feliz de que a negra estivesse sendo amigável com ela. E eis algumas coisas que a garota branca disse para a garota negra durante o caminho de vinte minutos: 

1) “Já namorei um negro.” 
2) “Inclusive o meu namorado atual é negro.” 
3) “Tá bom, negro não, peruano. Mas ele é mais escuro do que você até.” 
4) “Eu não sinto atração por branco.” 
5) “Eu acho a cor da minha pele meio repulsiva.”  
6) “O DNA do negro é superior ao do branco.” 
7) “Eu não queria ser branca, eu queria ser negra.
8) “Acho que em outra vida eu fui negra.” 

A todas essas a garota negra respondia sensatamente coisas como “arrã”, “que legal”, e (na parte do DNA) “não acho superior, superior não, né, igual, igual” – e eu tentava me concentrar mal-sucedidamente na leitura de The Rape of the Lock, de Alexander Pope (um branco, corcunda).  

Ó vocês super-ultra-anti-racistas, quando vão conseguir conversar com uma pessoa negra normalmente, sem salamaleques, auto-humilhações, xingamentos aos próprios antepassados, cusparadas nas próprias avozinhas e assim por diante?  

Quando conseguirem isso, aproveitem e tentem também interagir com normalidade com os membros das classes baixas cujos serviços vocês contratam: motoristas de Uber, mecânicos, eletricistas e assim por diante. Vocês sempre parecem horrorizados ao ouvir o que eles falam, reproduzem os diálogos no Twitter para seus colegas twinkies espantados, como se vocês não soubessem mesmo quais as prováveis opiniões políticas e sociais de um membro do povo. Se acalmem, eles não são esclarecidos — com certeza algum autor marxista deve ter estudado essa tacanhice infeliz das pessoas que não moram no seu bairro. 

Ou se a interação não vai para esse lado desagradavelmente ideológico e é mais simples e benévola, sempre parece que vocês estão tendo algum tipo de experiência erótico-religiosa, como William Blake (branco, nudista) falando com anjos em cima de árvores.  

**  

O homem precisou de milhões de anos para aprender a fazer coisas feias. Mostrem-me uma pintura de caverna, um vitral de igreja gótica, um portão, uma lápide, um urinol ou um chinelo celta, ou qualquer objeto sumério, hitita, egípcio, grego ou romano, que seja feio. Não existe. Eles não conseguiam. A feiúra era só no corpo humano; eles a viam nos rostos uns dos outros, mas não conseguiam extrair isso para um objeto. Seus dedos se atrapalhavam e faziam coisas bonitas. Aqui e ali um pintor anônimo colocava um diabo feio num canto da tela, e Bosch, Brueghel, Leonardo conseguiam reproduzir um rosto feio e bexiguento. Mas foi preciso esperar muito para que uma feiúra não-facial fosse produzida na Terra. Só no século XIX a humanidade conseguiu fazer coisas feias além de filhos; casas feias de operários, ruas deprimentes, bairros deprimentíssimos, e as roupas negras da época vitoriana que causavam desgosto em Oscar Wilde: tudo isso era uma novidade na história, objetos feios! Impossível desviar os olhos!  

Como no início de toda forma de arte, começaram com timidez. Mas logo criaram cidades feias, e toda uma civilização dois-terços feia e um terço medonha, atingindo uma Era de Ouro da Feiúra da qual ainda não começamos a ver o declínio. Do tempo e do esforço que foram precisos para desenvolver essa arte, concluo que pintar a Capela Sistina é mais fácil que fazer uma capa de caderno Tilibra. 

Não só em termos históricos, mas também em termos espaciais a feiúra é algo muito, muito raro. Você pode percorrer o universo conhecido de um canto ao outro sem encontrar uma única coisa feia, da Galáxia de Tuuros até a Galáxia de Phradox. Alguém consegue imaginar uma estrela feia? Uma constelação kitsch? Por algum motivo bizarro, em todo o universo você só vai encontrar coisas feias no espaço miraculosamente exíguo que vai de Omsk a Birigui.  

*** 

Quando não escrevo aqui na Crusoé, trabalho em uma empresa em que todos os duzentos funcionários são de direita. Todos menos um: tem um comunista no meio.  

Longe de ser maltratado, todos sorriem quando lembram que ele é um comunista. Nos discursos em festas e eventos da empresa, ele sempre é mencionado afetuosamente: “Nosso comunista aqui, o fulano de tal” — e ele ri, e todos riem, e eu rio também. Nos sentimos bem em aceitá-lo, e ficamos até um pouco espantados que ele nos aceite. Mas alguém consegue imaginar o contrário? Uma empresa com duzentos esquerdistas, contratando um direitista e o tratando com afeto? É impossível.  

E o que isso diz sobre nós, os não-esquerdistas? Que somos agradavelmente tolerantes. Vamos nos permitir um pequeno momento de autoestima aqui, depois de décadas perdendo todas as batalhas que travamos. Sim, somos desorganizados. Somos incompetentes no jogo político. Mas somos tolerantes e civilizados, apanhamos sempre de jeito elegante, e somos as últimas pessoas na Terra que gostam de diferenças de opinião. Viva nós. 

 

Alexandre Soares Silva é escritor e roteirista.

 

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  1. Quanto ao tema do feio, acho que em nenhum lugar é mais evidente do que na arquitetura. Visitar uma capital europeia e ver a diferença berrante entre os edifícios dos centros históricos para os dos bairros modernos dos arredores é medonho

  2. Excelente seu texto, Alexandre. Mas, acima de tudo, você me fez pesquisar mais sobre o "cocozão de Ponta Grossa". Sou paranaense (curitibana) e nunca tinha ouvido falar dessa graciosa obra artística (anônima). Kkkkkk. Seja como for, a Estética deixou de ser considerada faz tempo, a Ética também.

  3. Já li e ouvi (não pesquisei) que a maioria dos negros não tá nem aí pra isso, são bem resolvidos e seguros de si. Os que criam problema são uma minoria raivosa e ressentida. Mas hoje fica todo mundo apavorado, pior do que antes com o Pecado Original. Aliás, isso de que já nascemos maculados com o racismo dos antepassados é puro pecado original. Com a diferença de que o pecado original pode ser redimido pelo batismo, e o "racismo intrínseco" nem isso. Tem q ficar se penitenciando pra sempre.

  4. Sempre um prazer ler as colunas do Alexandre. Sim, tem toda a razão: veja a grade na casa dos meus pais, feitas faz mais de 70 anos, com volutas e curvas, uma beleza; e veja a grade que coloquei em casa mês passado: triste, barra chata, sem nenhuma beleza, horrorosa mesmo. E, finalmente: Viva nós!

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