Ricardo Stuckert / PRDesde que “o Brasil voltou”, porém, o significado literal da expressão fake news sofreu corrosões sucessivas

As falsidades da conversa sobre fake news

A obsessão dos jornalistas brasileiros com as tais notícias falsas distancia o jornalismo da notícia real – e o aproxima da propaganda governista
24.05.24

Fake news: peguei nojo. E ando entojado da expressão, não tanto do elusivo objeto que ela designa. Pois o problema das duas palavras em inglês está justamente na esquizofrenia semântica que as aflige sempre que são reunidas. Na aparência, essa conjunção simples de adjetivo e substantivo parece falar de uma realidade facilmente compreensível e traduzível: notícias falsas. Mas o uso foi estreitando o sentido. A política, mais uma vez, deformou a linguagem.  

Durante o governo que se encerrou no último dia de 2022, fake news designava sobretudo as notícias falsas espalhadas por ocupantes do Planalto e adjacências. Até aí, a restrição política do sentido era justificável: dos perigos das vacinas às urnas eletrônicas fraudadas, aquela turma foi mesmo pródiga em invenções alucinadas. Desde que “o Brasil voltou”, porém, o significado literal da expressão sofreu corrosões sucessivas, até se deformar por completo: fake news são notícias falsas sobre o governo – aliás, são notícias descontextualizadas sobre o mesmo governo – ou, na verdade, notícias desfavoráveis ao governo e não só notícias propriamente ditas, mas opiniões contrárias à democracia (que agora é sinônimo de “governo”), sobretudo se divulgadas em rede social. 

O leitor talvez tenha acompanhado a triste treta entre uma comentarista de canal de notícias e uma pesquisadora ligada a um instituto acadêmico que monitora temas políticos na internet. O episódio ilustra bem as distorções que a fixação patológica nas tais fake news impôs à prática jornalística. A comentarista fez um editorial contra as mensagens (todas falsas, segundo ela) que circulavam pela rede acusando a ausência do Estado no socorro às vítimas da enchente no Rio Grande do Sul. Amparou-se em um levantamento feito pelo instituto universitário. A pesquisadora foi ao X (ex-Twitter) corrigir a comentarista: o levantamento na verdade não aferiu se o conteúdo das postagens era falso ou verdadeiro. Seguiu-se uma daquelas discussões que, como dizia Otto Lara Resende, produzem mais perdigotos do que luz. Os tuiteiros que terçam armas na guerra cultural foram ao delírio. A pesquisadora foi afastada de suas funções; a comentarista segue no canal de notícias. Universidade e imprensa poderiam ter passado sem esse vexame.  

Sabe o que faltou nesse bate-boca sobre notícias falsa? Notícia. Houve mesmo muita desinformação online nesses dias de dilúvio no sul, mas quase não vi reportagens que demonstrassem, em campo, o dano que elas teriam causado ao esforço de socorro às vítimas das cheias. Uma das mentiras propagadas nas redes, segundo li em mais de um veículo, foi a de que embarcações de voluntários seriam multadas pelas autoridades se não apresentassem sei lá que licença. Isso inibiu o bravo pessoal que salvava gente isolada pelas águas? Desconfio que não. O mesmo canal de notícias da comentarista indignada com fake news vivia mostrando botes, barcos e jet skis em ação. 

Catástrofes colossais como a que desabou sobre o Rio Grande do Sul são propícias a boatos. E o boato (palavra tão adequada e tão esquecida…) pode tanto convencer as pessoas de que os riscos reais são exagerados quanto induzi-las ao pânico desmedido. O jornalismo faz bom trabalho quando desmente rumores infundados e estabelece a real dimensão do perigo. Mas a tônica da crítica às supostas fake news não era a utilidade pública. O objetivo muito escancarado era salvar a cara do governo.  

Não ignoro que os memes e hashtags que circularam nas redes bolsonaristas foram, como de costume, pautadas pelo ressentimento. A exaltação do heroísmo “civil” nas ações de socorro deu vazão ao sentimento de abandono compartilhado por boa parte da Horda Canarinha depois que as Forças Armadas não atenderam ao chamado para derrubar o governo eleito. Mas quando atribui tanta importância a golpistas magoados, o jornalismo reforça acriticamente a linha de propaganda central do governo petista – aquela conversa para cavalo dormir em cima do telhado segundo a qual a democracia foi restaurada e o Brasil agora está em reconstrução.  

Sucedendo um governo que tinha Ricardo “Passa Boiada” Salles no ministério do Meio Ambiente, os atuais detentores da Bic executiva não encontraram dificuldade para fazer de conta que a preservação das florestas e a contenção das emissões de carbono voltaram à agenda do Planalto. A figura decorativa de Marina Silva no ministério também ajuda o governo a parecer mais verde na foto. Mas convém lembrar que Lula, em seus mandatos anteriores, costumava reclamar sempre que obras essenciais para as empreitei…, digo, para o desenvolvimento nacional eram interrompidas porque era preciso “salvar uma perereca”. Não me parece que ele tenha mudado. Transição para energia limpa? Fica para depois. Primeiro, a Novonor (ex-Odebrecht) tem de concluir uma refinaria. E no que concerne às providências para minimizar os efeitos de eventos meteorológicos destrutivos – cada vez mais frequentes, o que deveria torná-los previsíveis –, virtualmente todos os governos vêm falhando há muito tempo. O Rio Grande do Sul só se destacou pelas proporções assustadoras da catástrofe.  

As fake news estão longe de ser o grande flagelo de nossos dias.   

*** 

O anglicismo fake news e sua tradução literal, notícias falsas, também ajudam o jornalista, profissional de uma indústria em crise, a recuperar um tantinho de sua autoestima. Na TV, em podcasts, em colunas de jornal ou de sites noticiosos, sempre que um jornalista se põe a perorar sobre as tais fake news, ele as coloca no território indômito das redes sociais – que precisam urgentemente de regulação! Nesse esquema simplista, X, Facebook, TikTok e similares ocupam posição antípoda à imprensa. É um modo nada sutil do jornalista se apresentar como o guardião único da informação confiável.  

Eu, ao contrário, tendo a ouvir o ruído infernal das redes como um seguimento natural do barulho mecânico das gráficas. Mas isso seria tema para outro texto. Talvez eu ainda o escreva.   

 

Jerônimo Teixeira é jornalista e escritor

 

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  1. Hoje quando escuto alguém falar 'Fake News" automaticamente me vem a cabeça a imagem daquela comentarista loira, de traços europeus, cujo nome começa com D e termina com o sobrenome LIMA.

  2. Fake news, fascista, comunista, narrativa: não aguento mais. Vou passar a tapar os ouvidos das próximas vezes em que ouvir isto.

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