Arquivo PessoalEm uma estrada do Paquistão, terra desta primeira parte da história

Terra de fronteira – Primeira parte

A curiosa história de como parei no Paquistão, com a honrosa missão escrever um livro com tudo pago
24.05.24

No dia 17 de julho de 2008, viajei para São Paulo. Minha intenção era participar de uma passeata dos parentes e amigos dos passageiros do voo JJ-3054, da TAM, que exatamente um ano antes colidira com o terminal de cargas da empresa, situado quase ao lado da pista de aterrissagem do aeroporto de Congonhas, na avenida Washington Luís.  

Esse acidente foi e (continua sendo) o maior desastre aéreo da aviação comercial brasileira, com 199 mortos, inclusive 12 que estavam no solo. 

Eu não tinha nada contra a TAM, mas é nessas passeatas que se consegue contato com pessoas que podem falar sobre seus entes queridos falecidos na tragédia.  

É que eu queria incluir o voo JJ-3054 em meu livro Perda Total, que acabou sendo publicado pela editora Objetiva em 2011, chegando a permanecer várias semanas na lista dos mais vendidos da revista Veja. 

Eis que na passeata me deparo com o Rodrigo Teixeira, da RT Features, que me convidou para participar do projeto Amores Expressos, uma parceria da RT com a Companhia das Letras, projeto esse segundo o qual 20 autores (acabaram sendo 17, dos quais só 11 se transformaram em livros) viajariam para diversos países, em cujos cenários escreveriam histórias de amor (ficções) envolvendo um brasileiro e um natural do país. 

Pois bem. A mim foram oferecidos três destinos: Sierra Leoa, Bagdá e Paquistão. 

Por eliminação, escolhi o último. Sierra Leoa não tinha lei; em Bagdá, na Zona Verde não acontecia nada e fora dela era perigoso demais; o Paquistão pelo menos havia polícia e lei. 

Como exigi viajar de classe executiva, e em cada cidade paquistanesa ficar no melhor hotel, tudo por conta do projeto, a Cia. das Letras tirou meu nome fora. 

Mas como o Rodrigo é apaixonado pelo livro Os mercadores da noite, resolveu bancar tudo de seu bolso, incluindo um adiantamento de 15 mil dólares. 

Como eu conhecia o repórter cinematográfico Sergio Gilz, da TV Globo, baseado em Londres, e ele, por sua vez, era amigo da brasileira Cristina von Sperling, residente em Islamabad, casada com um diplomata paquistanês que já fora embaixador em Brasília, me conectou com ela por e-mail. 

Mais do que depressa enviei à Cristina, por DHL, um exemplar de Os mercadores da noite. 

Ela adorou o livro. E, como viria ao Brasil visitar a família, marcamos encontro na capital federal. 

Deu tudo certo. Nos conhecemos pessoalmente e ela me acompanhou à embaixada paquistanesa, onde me apresentou ao embaixador. 

O Paquistão não é um país que incentiva o turismo. Mas, de novo, Os mercadores da noite funcionou. 

Dei ao embaixador um exemplar da versão em inglês do livro (The Sunday Night Traders). Ele leu em dois ou três dias e devolveu o passaporte para mim, com o visto e um bilhete. 

Não se preocupe com o Paquistão.” 

Eu não sabia se com isso ele queria dizer que o país não oferecia perigo, se eles iriam me vigiar, protegendo-me, ou se cuidariam de toda a viagem. Mais tarde eu saberia que a terceira hipótese é que prevaleceria. 

Uma semana antes de eu viajar, o hotel Marriott, onde me hospedaria, foi explodido num atentado da Al-Qaeda, matando 54 pessoas e ferindo 266. 

Como a British Airways, companhia na qual eu voaria para lá, com conexão em Londres, suspendeu todos os voos para o país, tive de mudar meus planos. 

Além de, por motivos óbvios, trocar de hotel (fiz uma reserva no Best Western) fui obrigado a mudar de voos. 

Saí do Rio num Airbus da TAM para Londres. De lá, segui num 777 da Emirates, para o Dubai e, após duas ou três horas de espera, parti em outro 777 da empresa para o Aeroporto Internacional Benazir Bhutto, em Islamabad. 

Dubai é um país tão rico que na sala VIP do aeroporto, onde eu estava, tinha mais passageiros que nas partes comuns. 

Aterrissamos às oito da manhã de 3 de outubro (segundo dia após o fim do Ramadã) em Islamabad. 

Logo após pegar minhas malas, saí para o saguão do aeroporto, sem ter a menor ideia do que me esperava. 

Um homem de meia idade, vestindo traje típico paquistanês (shalwar kameeez) me aguardava com uma placa com meu nome. Mais tarde, eu saberia que ele seria meu chofer durante toda a estadia no país. 

Logo adiante, ele me apresentaria ao meu fixer, Naveed Sial, do Ministério da Cultura, que se apropriaria literalmente de mim.  

Fixers, que todos os correspondentes internacionais conhecem, são muito mais importantes do que um simples guia. 

Eles resolvem tudo: onde comer, como alugar um riquixá (motorizado e conhecido como Suzuki, uma vez que são todos dessa marca), em que restaurante comer, onde ir ao banheiro (um problemaço para mim, pois as latrinas de restaurantes de beira de estrada são todas boi, como nas prisões brasileiras) e qualquer emergência que por ventura surgir. 

Faltava uma última surpresa para aquela manhã. 

Do lado de fora do terminal, um Mercedes-Benz novo em folha nos aguardava, fora dois jipes da polícia, cada um com um motorista e dois seguranças armados de metralhadoras. 

Um dos policiais fica de pé com a arma do lado de fora do teto solar. 

Assim teve início minha viagem ao Paquistão. 

Continua na próxima semana. 

 

Ivan Sant’Anna é escritor e investidor.

[email protected]

 

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  1. Sem ironia, mas com um gosto pela brincadeira, "porventura" não seria o caso de utilizar esta expressão, em vez de "por ventura"?

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