Cruzeiro via InstagramNem as defesas milagrosas que garantiram os títulos da Libertadores e do Mundial de Clubes ao alvinegro foram o bastante para uma despedida honrosa do goleiro

Um goleiro nunca é o bastante

Cássio elevou a maldição dos goleiros a um patamar inédito. E esse talvez seja o melhor elogio que se pode fazer a um arqueiro
24.05.24

Cássio se tornou, nas últimas décadas, o maior ídolo da história do Corinthians. Mas nem as defesas milagrosas que garantiram os títulos da Libertadores e do Mundial de Clubes ao alvinegro foram o bastante para uma despedida honrosa do goleiro, que abreviou sua passagem pelo clube em busca de alguma paz no Cruzeiro.

Repetiu-se com Cássio o mesmo roteiro de Rogério Ceni, Marcos e Fábio: todos se tornaram grandes demais em seus clubes, os maiores, mas na posição mais vulnerável dentro de um campo de futebol. Cada um sofreu as consequências de forma distinta, mas nenhuma delas foi tão dramática quanto a do ídolo corintiano.

Eduardo Galeano dizia que os goleiros não usam o número um nas costas por serem os primeiros a serem pagos, mas por serem os primeiros a pagar. Cássio se consagrou com a 12, mas passou a pagar primeiro que os outros de qualquer forma no Parque São Jorge.

Todos os gols levados pelo Corinthians, um clube em crise em vários aspectos, da presidência ao comando de ataque, passaram a ser culpa sua, ainda que não fossem. Ainda que a defesa não estivesse conseguindo proteger direito a entrada da área ou que o ataque tivesse se tornado inoperante. É como se ele fosse o único a merecer cobranças, porque dos outros não era possível esperar nada mesmo.

“É sempre culpa do goleiro. E se não é, ainda assim lhe põem a culpa. Quando qualquer jogador comete uma falta, é ele que será punido: eles o deixam lá, na imensidade da baliza vazia, abandonado diante de seu executor”, descreve Galeano.

É uma posição amaldiçoada. O goleiro “terá menos o que fazer quando seu time estiver jogando melhor, e só estará no seu melhor desempenho quando o resto do time tiver falhado de alguma forma. Ele é como o salva-vidas ou o bombeiro, a quem devemos agradecer em tempos de crise, mesmo quando todos se perguntam por que a crise surgiu”, resume Jonathan Wilson em The Outsider: A History of the Goalkeeper.

O livro conta como a posição de goleiro surgiu décadas depois das primeiras partidas de futebol serem disputadas — data de 1871 o primeiro registro do arqueiro em um livro de regras, apesar de versões do futebol, desenvolvido a partir do rúgbi, serem jogadas desde a década de 1830. O único jogador que pode tocar a bola com as mão dentro de campo foi a evolução do defensor mais recuado para proteger a própria meta.

Ao se especializar em evitar aquilo por que todos esperam, o goleiro se estabeleceu com um anti-jogador de futebol, reflete Francis Hodgson em Only the Goalkeeper to Beat, mencionado no livro de Wilson. A posição se torna ainda mais dramática quando o autor de The Outsider (o estranho, o forasteiro) evoca as raízes antropológicas do futebol, segundo as quais o jogo nasceu de um ritual religioso.

Os deuses da fertilidade eram servidos por meio de jogos com bola. Ao evitar, por ofício, que as bolas cheguem ao seu destino, os goleiros se prestam, na perspectiva antropológica, a atuar como destruidores de colheitas e causadores da fome. Não é um papel muito confortável, ainda mais para aqueles que conseguem executar tão bem o serviço.

Até o mítico Lev Yashin sofreu no fim da carreira na União Soviética. Mas Cássio elevou a maldição dos goleiros a um patamar inédito. E esse talvez seja o melhor elogio que se pode fazer a um arqueiro.

 

Rodolfo Borges é jornalista.

 

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