Alberto Ruy/Secom/TSE"Quando o dono de uma rede social diz que não vai mais obedecer ao judiciário, urge baixar novas leis para que ele deixe de cumpri-las"

As hipérboles histéricas da dupla Musk & Moraes

Entre fantasias paranoides sobre a ditadura do judiciário e sobre a ameaça do X à soberania nacional, o debate público brasileiro chega a mais um ponto baixo
12.04.24

Atravessamos dias hiperbólicos. Vivemos tempos de histeria. O debate público está sob o império da hipérbole histérica.

Não quero desmerecer a hipérbole por si mesma. Pode existir arte no exagero – mas só quando o exagero se sabe exagerado. Eis aqui o apaixonado Romeu falando de Julieta, na tradução de José Francisco Botelho: “O fulgor desse rosto ofuscaria/ as estrelas do céu, como o Sol pleno/ ofusca um lampião”. O jovem Montéquio sabe que a bela face de sua amada Capuleto não produz luz própria. O fulgor de que ele fala é obviamente figurativo. Trata-se de uma hipérbole erótica.

A hipérbole histérica, ao contrário, não admite que é um exagero. Os militantes histéricos que a propagam acreditam fervorosamente que ela é uma descrição acurada da realidade. Um exemplo que anda na ordem do dia é o emprego abusivo da palavra “genocídio”. Já se falou muito em um genocídio de jovens negros no Brasil, e hoje se discute o suposto genocídio dos palestinos na ofensiva israelense em Gaza. Sim, os negros estão desproporcionalmente representados nas estatísticas da violência no Brasil – são 77% das vítimas de homicídio, segundo o Atlas da Violência, e 83% das vítimas de intervenções policiais, segundo o último Anuário Brasileiro de Segurança Pública –, mas isso não é resultado de um esforço sistemático para exterminar os negros brasileiros. Sobre a situação em Gaza, cabe dizer que o recente assassinato de sete agentes da ONG World Trade Kitchen (WTC) não pode ser considerado uma dessas coisas que “acontecem na guerra” (tal foi o eufemismo indecente com que Netanyahu explicou o caso), e que há evidências de outros tantos crimes humanitários. Mas, de novo, não se verifica um projeto de extermínio dos palestinos. Nos dois casos, a gritaria em torno do genocídio abafa a crítica consistente – e não salva uma só vida negra ou palestina.

Mas não vou me alongar sobre essas tragédias. Meu assunto hoje é a inacreditável chanchada brasileira na qual Elon Musk, o bilionário bufão, despontou como protagonista – herói para a direita, vilão para a esquerda –, em duelo contra Alexandre de Moraes, o xerife do STF. Embora o dono do X (ex-Twitter) seja um sul-africano radicado nos Estados Unidos, o enredo dessa comédia só seria possível no Brasil. Trata-se de uma farsa amoral, pois, como bem notou Carlos Graieb no seu artigo sobre o episódio em O Antagonista, “não há inocentes na política, especialmente na brasileira”.

Michael Shellenberger, jornalista a quem Musk confiou os chamados Arquivos Twitter Brasil, disse no X que o país está prestes a se tornar uma ditadura totalitária. O próprio Musk ecoou a denúncia, afirmando, também no X, que Alexandre de Moraes é o ditador de facto do país, mantendo Lula em “uma coleira”. Os bolsonaristas extasiaram-se ao ver um magnata do big tech referendando uma de suas hipérboles histéricas favoritas: a “ditadura do judiciário”. A bronca será só com a censura judiciária? Em outros países, a rede de Musk não parece se preocupar muito com o controle exercido pelo poder executivo. Nas eleições da Turquia, o X aceitou censura do governo Erdogan; na Índia, derrubou tuítes e contas que falavam sobre protestos de agricultores no norte do país. E embora o X seja bloqueado na China, Musk tem feito elogios entusiasmados ao dinamismo econômico do país que Xi Jinping mantém na coleira. Por acaso, a Tesla foi autorizada a montar uma imensa fábrica na China…

Sempre bravateiro, Musk ameaçou liberar contas do X que estão bloqueadas por ordem do STF. Até o momento em que escrevo, na quarta-feira 10, a prometida liberdade ainda não raiou nas redes bolsonaristas (ou será que Musk liberou contas nanicas, das quais ninguém toma conhecimento? Não seria impossível: Moraes já multou uma senhora por um tuíte que teve só 61 visualizações). Mesmo assim, Alexandre de Moraes já saiu a campo, ordenando que a Polícia Federal investigue Musk. Expoente da jurisprudência exclamativa, Moraes não pôde deixar de incluir, em sua decisão, duas frases em caixa alta e negrito:

AS REDES SOCIAIS NÃO SÃO TERRA SEM LEI!

AS REDES SOCIAIS NÃO SÃO TERRA DE NINGUÉM!

Na decisão, o ministro afirma que a X apresenta “flagrante conduta” de incitação ao crime, obstrução da justiça e ameaça de não cumprir decisão judicial. Diz ainda que esses “fatos (…) representam um desrespeito à soberania do Brasil”. Ao que eu pergunto: hein? Por causa de uma estúpida fanfarronice, Musk converteu-se na encarnação hiperbólica da infiltração estrangeira que tradicionalmente assombra militares de direita e militantes da esquerda (os extremos da proverbial ferradura ideológica aqui se encontram na xenofobia paranoica).

A tal soberania nacional ameaçada revelou-se uma hipérbole histérica das mais contagiosas. Foi reiterada por ministros do governo Lula, por parlamentares, por colunistas da imprensa. A indefectível Gleisi Hoffmann também acusou Musk de atentar contra a soberania do Brasil – e o fez, vejam que graça!, na rede social cujo dono e soberano é o bilionário falastrão. E isso nem foi a maior patetice da semana: muita gente aproveitou a ocasião para sugerir que o Congresso recoloque em pauta o PL das Fake News. Pois quando o dono de uma rede social diz que não vai mais obedecer ao judiciário, urge baixar novas leis para que ele deixe de cumpri-las.

Graieb conclui seu artigo observando que a intervenção de Musk na discussão sobre a censura judiciária no Brasil “turvou ainda mais as águas” e não contribuiu em nada para que a liberdade de expressão seja plenamente garantida no Brasil. Correto. Quando os histéricos proclamam suas hipérboles aos berros, as vozes adultas e sensatas acabam abafadas.

Jerônimo Teixeira é jornalista e escritor

 

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  1. Musk está pouco se lixando pra liberdade de expressão no Brasil, o que lhe importa é como o abuso do judiciário brasileiro na sua plataforma pode se refletir na viabilidade financeira da empresa em mercados mais apetecíveis. O grande problema é o vexatório espetáculo que nossas elites decadentes e desavergonhadas fazem a partir das preocupantes acusações e provas desvendadas pela investigação jornalística

  2. Os déspotas jamais conviverão com a liberdade e para eles uma calça velha azul e desbotada já é muito ... o pior é que com o sapiens proliferando como ratos é o totalitarismo é o destino da humanidade.

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