Elon MuskElon Musk: da escola dos encrenqueiros - Foto: Reprodução

A questão do X

A briga entre Elon Musk e Alexandre de Moraes mostra que o Brasil vive em um estado de exceção permanente
12.04.24

O bilionário Elon Musk não é alguém disposto a “perder a vida por delicadeza”, como diria o poeta francês Arthur Rimbaud. Ele gosta de confronto, é da escola dos encrenqueiros. E foi assim que decidiu intervir no debate político brasileiro nesta semana, com uma série de mensagens em sua rede social, o X, antes conhecido como Twitter.

Musk reagiu a um fio de postagens do jornalista americano Michael Shellenberger, mostrando a interação entre autoridades brasileiras e advogados do X em torno de assuntos como privacidade de dados e liberdade de expressão (veja reportagem nesta edição).

Shellenberger afirmou que o Brasil se encontra à beira de uma ditadura totalitária, apontando o ministro do STF Alexandre de Moraes como principal culpado. Musk foi na mesma toada.

No último sábado, 6, ele disse que Moraes deveria “renunciar ou sofrer impeachment” e ameaçou deixar de cumprir determinações do STF. Ao longo desta semana, afirmou que o ministro havia se tornado “o ditador do Brasil, trazendo Lula em uma coleira”. Na madrugada desta quinta-feira,11, ao comentar um post do deputado federal Gustavo Gayer (PL-GO), que descreve o Brasil como “uma ditadura que se identifica como democracia”, ele escreveu: “Exato. Ditador Alexandre.”

Antes de chegar às questões importantes levantadas pelo “Twitter Files”, é preciso limpar o terreno.

Em primeiro lugar, a ideia de que Elon Musk seja um “absolutista da liberdade de expressão”, como ele se autodeclara, é pura e simples mentira.

Musk tem viagem marcada para a Índia ainda em abril, para discutir a entrada da Tesla, sua companhia automotiva, no país. Nesta quarta-feira, 10, ele publicou uma mensagem dizendo que está ansioso para se encontrar com o primeiro-ministro do país, Narendra Modi, de quem diz ser “um fã”.

Ora, Modi conseguiu emplacar na Índia uma legislação de fazer inveja a Lula e ao PT, dado o nível de ingerência sobre as redes sociais que possibilita ao governo. Segundo a lei, o Ministério da Tecnologia indiano pode mandar retirar qualquer conteúdo da internet, sem aviso prévio aos atingidos ou interferência do Judiciário, se julgar que ele traz “informação falsa ou enganosa a respeito de ações do governo central”.

É incompreensível que um absolutista da liberdade de expressão não tenha nada a dizer sobre isso e se apresente como um fã do político que patrocinou essa lei autoritária.

As manifestações de Musk, além disso, estão em plena sintonia com a movimentação recente que os bolsonaristas vêm fazendo, nos Estados Unidos e na Europa, para se apresentarem como vítimas inocentes de uma campanha de perseguição política.

A postagem de Gustavo Gayer que Musk retuitou nesta quinta, como mencionado acima, diz respeito à visita do deputado ao Parlamento Europeu, em companhia de Eduardo Bolsonaro e Bia Kicis. O objetivo foi denunciar a suposta “tirania” existente no Brasil.

Também nesta quinta, Musk replicou a notícia de que o Congresso americano decidiu averiguar a situação do X em relação às autoridades brasileiras. Trata-se, mais especificamente, de deputados republicanos com quem políticos bolsonaristas se reuniram há pouco mais de um mês, para articular pressões e até mesmo punições ao Brasil por infrações – vejam só – aos direitos humanos.

Os políticos bolsonaristas não são mansas ovelhinhas. São lobos que tentaram articular uma intervenção militar no Brasil. Denunciar abusos contra a liberdade de expressão é a ferramenta que encontraram para tentar escapar da responsabilidade por suas conspirações contra a democracia. E a estratégia só é eficaz porque encontra um apoio na realidade – um apoio que não se limita aos “Twitter Files”.

No mês passado, completaram-se cinco anos desde que o STF abriu o inquérito das fake news, voltado a investigar a disseminação de notícias falsas e ameaças contra os ministros da Corte. Seguiu-se a ele, em 2021, o inquérito das milícias digitais e dos atos antidemocráticos. Ambos estão sob a relatoria do ministro Alexandre de Moraes e transcorrem em sigilo. O desdobramento mais recente do segundo inquérito ocorreu nesta semana: depois das acusações dirigidas contra ele, Moraes decidiu incluir Elon Musk entre os investigados.

Em 2022, ano de disputa presidencial, o TSE alargou o seu próprio poder de polícia. A resolução, depois ratificada pelo STF, permitiu à presidência da Corte – também exercida naquele momento por Alexandre de Moraes – mandar remover da internet conteúdos “sabidamente inverídicos ou gravemente descontextualizados”, mesmo sem requisição de qualquer candidato ou do Ministério Público.

Recentemente, o tribunal editou regras para as eleições municipais deste ano. Entre as novidades, estabeleceu que as plataformas de internet poderão ser responsabilizadas por publicações “inverídicas” juntamente com os autores, o que deve levá-las a derrubar postagens de maneira preventiva, para evitar uma avalanche de penalidades.

Essa medida vai de encontro ao artigo 19 do Marco Civil da Internet, desenhado justamente para impedir essa responsabilização solidária. Nesta semana, mais uma vez devido às postagens de Elon Musk, o ministro Dias Toffoli decidiu levar ao plenário do STF uma ação sobre a constitucionalidade desse mesmo artigo, o que pode resultar na sua anulação definitiva, para além do período eleitoral.

Esses são alguns dos marcos mais importantes num período de meia década em que as restrições à liberdade de expressão e a vigilância policialesca sobre as redes sociais, o grande fórum público da atualidade, passaram a ser vistas como indispensáveis para a proteção à democracia no Brasil, ou até mesmo como sua pedra angular.

A ideia causaria arrepios em teóricos clássicos da liberdade de expressão como o inglês John Stuart Mill, para quem “se toda a humanidade, menos um indivíduo, fosse de uma mesma opinião, a humanidade não teria mais direito de silenciar esse indivíduo do que ele, se tivesse o poder, teria o direito de silenciar a humanidade”.

A situação brasileira se agrava porque, em vez de amparar-se em critérios legais transparentes, esse cerceamento se vale de frases de efeito como “as redes sociais não são terra sem lei” ou “liberdade de expressão não é liberdade de agressão”, usadas por Alexandre de Moraes, e em critérios vagos como “desordem informacional”.

Rafael Mafei, professor do departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da USP, contrasta os bons momentos do STF na defesa da liberdade de expressão com essas decisões recentes.

“O STF foi importante para a defesa da liberdade de expressão em muitas situações. Derrubou a regulamentação da profissão jornalística que vinha da época da ditadura, garantiu a liberdade artística em várias oportunidades, assegurou o direito à produção jornalística sobre figuras públicas, preservou o direito de acesso a informações públicas quando o governo de Bolsonaro tentou limitá-lo”, diz o professor. “Mas, mesmo que reconheçamos a gravidade do contexto e as más intenções de atores que trabalham para desgastar a legitimidade do tribunal, certas decisões são criticáveis. Bloqueios de contas e ordens de suspensão de circulação de conteúdo jornalístico são medidas que exigiriam justificativas e critérios claros, que nem sempre estão presentes. Em muitos casos, em vez de critérios jurídicos claros, há meros bordões, como ‘liberdade de expressão não é liberdade de agressão’. Esse é um bom slogan para uma campanha junto à opinião pública, mas não é um critério que justifica a tomada de uma decisão judicial.”

Há vários exemplos de como isso vem acontecendo.

No começo do ano passado, por exemplo, o inquérito das fake news foi usado para forçar a retirada da internet de textos e anúncios veiculados por empresas de tecnologia como o Google, que criticavam o projeto de regulamentação das redes sociais que ficou conhecido como PL das Fake News. É preciso uma enorme dose de criatividade – ou arbítrio – para estabelecer um nexo entre as manifestações das empresas e as campanhas e ameaças contra o STF que deram origem ao inquérito, em 2019.

Durante as eleições de 2022, o então ministro do STF Ricardo Lewandowski, atual ministro da Justiça do governo Lula, mandou derrubar do X postagens que faziam menção a fatos verdadeiros, como o apoio do PT à ditadura da Nicarágua, ou um vídeo com o título “Relembre os Esquemas do Governo Lula”, que elencava os diversos escândalos políticos do primeiro mandato do atual presidente. Segundo Lewandowski, como Lula não havia sido condenado por nenhum daqueles fatos, rememorá-los poderia causar desordem informacional – algo com que “o cidadão comum, o eleitor ordinário (…) não estaria preparado para lidar”.

Os “Twitter Files” revelaram fatos preocupantes do período eleitoral de 2022. Entre eles, estão ordens para que a rede social entregasse informações privadas de usuários pelo simples fato de eles utilizarem certas hashtags, como #VotoDemocraticoAuditavel; a suspensão da conta de um pastor bolsonarista por Alexandre de Moraes, sem que o motivo fosse informado; e a presença da Polícia Federal numa reunião entre plataformas da internet e a presidência do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

São episódios que denotam o quanto o Judiciário, em particular o TSE, se aproximou da paranoia e do arbítrio ao lidar com a comunicação que ocorre nas redes sociais. O emprego de uma hashtag, um recurso que nada tem de fraudulento para agrupar mensagens em torno de um tema, pareceu suficiente para desencadear uma devassa. Em vez de postagens específicas, uma conta inteira foi suprimida sem o oferecimento de uma justificativa. Quanto à presença  da PF numa reunião no TSE com empresas de tecnologia, ela deveria dispensar comentários. O episódio deixou a sensação de que os policiais estavam “sob grande pressão” do tribunal para levantar informações sobre possíveis alvos de monitoramento ou derrubada de contas.

A decisão com que Alexandre de Moraes incluiu Elon Musk na investigação dos  atos antidemocráticos ilustra bem o método que vem sendo empregado pelo ministro. Ela não menciona os dispositivos legais que teriam sido infringidos pelo bilionário, apenas o contexto político que levou à instauração do inquérito. É quase como se o inquérito fosse a própria lei. Musk seria culpado de dar início a uma “campanha de desinformação” sobre o STF e o TSE, recorrendo à  “instrumentalização criminosa de uma rede social” – conceitos vagos que não se referem a nenhum tipo penal existente no Brasil.

O episódio dos “Twitter Files” é importante por revelar mais detalhes de como o Judiciário se tornou temeroso da liberdade de expressão e até mesmo hostil a ela. Mas não só isso. A transformação de Elon Musk em um investigado da polícia brasileira situação quase cômica, porque não deverá acarretar nenhum contratempo maior ao bilionário e porque Musk notoriamente vive em busca de confusões desse tipo mostra como os célebres inquéritos do STF (ou do Xandão) ganharam vida própria. Depois de cinco anos da abertura do primeiro deles, é preciso que sejam concluídos e que os casos sejam levados a julgamento, absolvendo aqueles que tiverem de ser absolvidos e condenando aqueles cuja culpa puder ser desenhada com clareza. Ao permanecerem abertos indefinidamente, eles deixam de ser produto de um momento histórico confuso e começam a se transformar em causa de um estado de exceção permanente no Brasil.

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  1. Independente, de quem trouxe a informação, se ele é coerente ou não, isso não nos diz respeito. Porém, ele apresentou uma série de evidências, que precisam, aí sim, serem investigadas. Temos a mania de sempre procurar os defeitos dos interlocutores, sempre que eles apresentem algo que nos desagrade, sejam eles de esquerda ou de direita.

  2. Os ditadores se lixam para os manés e não precisam justificar nada e o que já vivemos é a mais pura prova disto, um presidente fraco, um Estado sob tutela e uma nação sob curatela ... o que mais querem para ousarem enxergar a ditadura?

  3. É por essas e mais outras que eu apelidei a Liberdade de Expressão de "Liberdade Bom Brill, a de mil e uma utilidades" O artigo ignora a estratégia de apoio e cobertura, de valor incalculável, à eterna conspiração golpista do Jair.

  4. A vaidade do Moraes parece subir à cabeça e ele usa todo o poder de sua caneta, e apatia dos demais ministros, para fustigar oponentes. Vergonha de corte política

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