ReproduçãoMichael Shellenberger: não há discussão sobre autenticidade dos dados, que foram obtidos direto da fonte

Os arquivos da discórdia

Por que as informações reveladas em mensagens dos advogados do Twitter não podem ser ignoradas
12.04.24

O jornalista americano Michael Shellenberger publicou 24 mensagens na rede social X, antigo Twitter, na quarta, 3 de abril, com o título: “Twitter Files – Brazil”. Nelas, ele mostra, com prints de tela, diversos emails trocados entre os advogados da empresa no Brasil e na sede em São Francisco, na Califórnia. No dia seguinte, os jornalistas Eli Vieira e David Ágape publicaram uma reportagem na Gazeta do Povo com o mesmo material. O assunto explodiu no sábado, 6, quando o bilionário Elon Musk comentou uma patética mensagem do ministro do Supremo Tribunal Federal, STF, Alexandre de Moraes, publicada em janeiro. Nela, Moraes chamava seu ex-colega na Corte, Ricardo Lewandowski, de “magistrado exemplar” e “brilhante jurista”. “Por que você está determinando tanta censura no Brasil?”, questionou Musk, em uma única linha. Nas horas e dias que se seguiram, o bilionário foi incluído em um inquérito do STF, foi chamado de “mimado” por jornalistas e trocou farpas com o presidente Lula, enquanto os jornalistas que divulgaram os arquivos foram atacados e o conteúdo das mensagens, deixado de lado.

Apesar de toda a discussão histérica da semana, os emails que os jornalistas revelaram são de enorme valia ao mostrar como o direito à privacidade e a liberdade de expressão estão sendo tratados no Brasil. E foi exatamente por esse motivo que os jornalistas que expuseram essa realidade foram tão trucidados por magistrados, por políticos e por boa parte da imprensa.

Uma figura-chave para entender a trama é o jornalista americano Michael Shellenberger, que ganhou milhares de seguidores brasileiros em 2019, quando questionou os equívocos de celebridades como Leonardo DiCaprio e Madonna sobre as queimadas na Amazônia (leia a entrevista “O ambientalista atômico” na Crusoé). Hoje com 52 anos, Shellenberger desenvolveu um laço forte com o Brasil. Nos anos 1990, ele veio para o Maranhão com o objetivo de estudar um acampamento do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra, o MST. A partir dessa experiência, ele começou a questionar alguns dos dogmas da esquerda que trazia consigo. Mais tarde, Shellenberger se envolveu em várias questões, como a promoção da energia nuclear (que não libera gases de efeito estufa) e o aumento da população de moradores de rua na Califórnia. Atualmente, sua principal fonte de receita são as 15 mil pessoas que assinam os textos que ele dispara por email.

Há dois anos, Shellenberger foi procurado por sua amiga Bari Weiss, uma jornalista que deixou o New York Times em 2020 e depois recebeu de Elon Musk os tais “Twitter Files”. O bilionário tinha acabado de assumir o controle do Twitter, pelo qual pagou 44 bilhões de dólares, com a promessa de aumentar a transparência e respeitar a liberdade de expressão. Ao chegar à empresa, Musk demitiu a equipe responsável pela moderação de conteúdo e forneceu a Bari e ao jornalista Matt Taibbi os arquivos com as mensagens dos advogados da empresa, trocadas entre 2020 e 2022. Segundo Musk, os emails mostravam como a liberdade de expressão estava sendo suprimida pela gestão anterior. A única condição imposta foi a de que, se eles fossem publicar algo baseado naqueles dados, que o fizessem antes no Twitter.

Entre as reportagens publicadas com base nesses arquivos estava uma que mostrava como o Twitter tinha reduzido o alcance de notícias sobre o laptop de Hunter Biden, filho do presidente americano Joe Biden. Outra matéria mostrou como funcionários do Twitter bloquearam palavras associadas ao ex-presidente Donald Trump, como “stopthesteal” (“parem com o roubo”, em inglês), sobre o resultado das eleições presidenciais de 2020 nos Estados Unidos. Os arquivos depois foram para a gaveta até que Shellenberger foi convidado para participar do Fórum da Liberdade, em Porto Alegre, este mês. Ele então foi provocado pelos jornalistas do Brasil para ver se tinha algo sobre o país nos tais arquivos. E encontraram muita coisa.

Não há questionamentos sobre a autenticidade dos emails divulgados, uma vez que foi o próprio dono da empresa, Elon Musk, que decidiu compartilhá-los. Todos os emails corporativos foram copiados diretamente dos servidores de dentro da sede da empresa, em São Francisco. A primeira seleção sobre o que dar ocorreu quando os jornalistas começaram a procurar conteúdos interessantes por palavras-chave, como “Brazil” ou “Moraes“. É um caso bem diferente do que ocorreu com o Wikileaks, do hacker australiano Julian Assange. Nos Twitter Files, nada foi roubado. Além disso, enquanto no Wikileaks Assange publicou toda informação que conseguiu, sem qualquer filtro ou edição, no caso do Twitter Files os jornalistas fizeram o seu trabalho. Eles analisaram o material, selecionaram os assuntos e consultaram as pessoas e entidades citadas. Uma ressalva poderia ser feita em relação à divulgação de email de funcionários, com seus nomes aparecendo. Os jornalistas do Twitter Files afirmam que consultaram os envolvidos. Quando não tiveram resposta, publicaram mesmo assim. “O direito de divulgar essas mensagens normalmente recai sobre a empresa”, diz o advogado Alexander Coelho, sócio do Godke Advogados e especialista em direito digital e proteção de dados (assista à entrevista com Alexander Coelho, aqui).

A publicação das mensagens dos advogados do Twitter levanta questões importantes, que podem conduzir a novas investigações. Os tribunais brasileiros estão solicitando informações indevidas às plataformas digitais, desrespeitando a privacidade das pessoas e o Marco Civil da Internet, de 2014? As empresas estão fornecendo esses dados? Juízes estão tentando manipular a circulação de informações nas redes sociais para prejudicar um determinado grupo político? Agentes da Polícia Federal participam das reuniões com juízes e empresas? Com base nos achados, seria possível compreender a dimensão dos fatos narrados nas mensagens divulgadas. “Isso seria algo muito positivo. Mas é claro também que queremos que as autoridades e instituições citadas nos emails voltem a agir dentro da lei e investiguem o que foi feito à margem dela”, diz o jornalista Eli Vieira, um dos responsáveis pelo Twitter Files.

Um passo importante seria o levantamento das ordens de sigilo nos inquéritos de Alexandre de Moraes. É fundamental que a população brasileira tome conhecimento de como o Supremo Tribunal Federal, o Tribunal Superior Eleitoral, o Ministério Público de São Paulo e a Polícia Federal estão atuando, para prevenir ações ao arrepio da Constituição e das leis. “Pedimos ao tribunal que levante as ordens de sigilo sem demora, que ouça nossos recursos e que os outros poderes da República façam todos os esforços, dentro de suas respectivas jurisdições, para exigir a transparência essencial em uma democracia próspera”, disse o X em um comunicado divulgado na quarta, 10.

Abaixo, seguem as principais revelações dos Twitter Files, em ordem cronológica:

 

FEVEREIRO DE 2020
Congressistas solicitaram IP e mensagens diretas, em desacordo com Marco Civil da Internet
O advogado Rafael Batista, do Twitter, enviou um email dizendo que membros do Congresso tinham solicitado o conteúdo de “registros de login” e mensagens diretas (DM) trocadas entre os usuários da plataforma. Batista informa que o pedido não está previsto no Marco Civil da Internet e que a empresa iria contestar o pedido (Crusoé tentou falar com Rafael Batista, mas não teve resposta).

 

 

JANEIRO DE 2021
Empresas digitais forneceram dados como telefones e IP sem ordem judicial
Outro email do advogado Rafael Batista afirma que o Ministério Público de São Paulo solicitou informações de registro de uma conta, que estaria associada ao crime organizado. O Twitter se negou duas vezes a fornecer o dado e disse que não coletava esse tipo de informação. “O decreto que regula o Marco Civil é muito claro ao definir os dados de registro, que cobre apenas o endereço físico e características pessoais, como nome, estado civil e profissão. Qualquer outro dado só pode ser fornecido sob ordem judicial”, escreve Batista. Ele então foi incluído em uma investigação, acusado de não cumprir com os pedidos do MP-SP. “Essa atitude (do Twitter) é isolada, porque todas as outras grandes empresas de tecnologia como Google, Facebook, Uber WhatsApp e Instagram fornecem dados de registro e números telefônicos sem ordem judicial”, escreve Batista. Crusoé procurou as empresas envolvidas para saber se isso acontece. O Google e a Meta, dona das redes Facebook, Instagram e WhatsApp, afirmaram que não iriam se pronunciar sobre o assunto. A Uber não respondeu.

 

 

AGOSTO DE 2021
TSE contra bolsonaristas
Batista avisou seus superiores que o Tribunal Superior Eleitoral, TSE, havia solicitado a desmonetização dos canais de apoiadores do presidente Jair Bolsonaro em diversas plataformas. Eles estavam sendo acusados de “ataques coordenados contra membros da Suprema Corte e, mais recentemente, também contra membros do TSE”. Escreve o advogado: “Mesmo que essa obrigação inicialmente não nos toque, a Corte também determinou que Twitter, Youtube, Twitch TV, Instagram e Facebook evitar sugerir, com base no algoritmo, perfis e vídeos de conteúdo político desacreditando o sistema eleitoral (legitimidade das eleições) em associação com o das contas dos usuários e identificar a origem específica do conteúdo (nós não fornecemos nenhuma URL específica de tuítes)”. Um superior de Batista, Diego de Lima Gualda, responde que “há um forte componente político nessa investigação e a Corte está colocando pressão para que a gente ceda”. Dois dias depois, Batista escreve que “parece que a Corte quer identificar as contas que podem adicionar alguns tipos de hashtags que estão ganhando atenção e com isso, de alguma maneira, reduzir o engajamento de conteúdos específicos na plataforma (por exemplo, impedir que algumas contas possam ser sugeridas para outras pessoas)“, escreve Batista. As hashtags são aquelas palavras precedidas pelo símbolo do jogo da velha (#), que ajudam a marcar publicações posteriores que falam sobre um mesmo assunto. A intervenção, se confirmada, significaria uma intervenção indevida do TSE na disputa eleitoral.

 

 

MARÇO DE 2022
Polícia Federal presente nas reuniões entre o TSE e as plataformas
Já em ano eleitoral, o diretor do setor legal do Twitter para a América Latina, Diego de Lima Gualda, fala de uma reunião com “o juiz”. Para Shellenberger, trata-se de Alexandre de Moraes. Para Eli Vieira, o “juiz” poderia ser também Luís Roberto Barroso. “Em primeiro lugar, a reunião não foi apenas com o juiz. Ele convidou membros técnicos da Polícia Federal e do Tribunal Superior Eleitoral, que estão liderando as investigações“, escreveu Gualda. Dois meses depois, o advogado afirma que “a Polícia Federal está sob muita pressão do TSE para fornecer resultados tangíveis para a investigação (lembrando que nesse processo a Polícia Federal está apoiando uma investigação que é conduzida pelo próprio TSE)”. Os encontros, se confirmados, mostrariam que juízes e investigadores atuam em conjunto, o que vai contra o devido processo legal.

 

 

TSE pede IP de pessoas que usam hashtags
Diego de Lima Gualda informa a equipe que o TSE pediu informações sobre o progresso mensal das hashtags #VotoImpressoNAO, #VotoDemocraticoAuditavel e #BarrosonaCadeia. O Twitter também deveria enviar  os números IPs de todos os usuários que usaram a hashtag #VotoDemocraticoAuditavel, a cada hora.

 

 

NOVEMBRO DE 2022
Moraes pede e consegue a exclusão de uma conta, sem dizer o motivo
Um advogado do Twitter informa os demais que o ministro do STF, Alexandre de Moraes, solicitou a exclusão da conta de um famoso pastor brasileiro e apoiador do presidente Jair Bolsonaro, André Valadão. “Apesar da ordem judicial não mencionar a razão exata do por que estão mirando a conta, nós CWC’ed (?) a conta e fornecemos os dados, como fizemos em outros pedidos do STF no mesmo contexto, e enviados um recurso contra a ordem, destacando que não temos acesso à substância da decisão e que a remoção de toda a conta é desproporcional”, afirma a mensagem.

 

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  1. Imaginemos o escarceu que se faria se isso tivesse sido feito pela antiga ABIN... Nossa liberdade já subiu no telhado

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