Gui MendesAgora vemos que uma opinião idiota, tendo alcançado só um punhado de leitores, já é considerada ameaça

A censura é o combustível do extremismo

Calar militantes antidemocráticos serve só para isolá-los e radicalizá-los, mas o Judiciário brasileiro insiste em perseguir nanicos nas redes sociais
08.12.23

Anos atrás, um colega de segundo grau (atual Ensino Médio) escreveu para a publicação em que eu trabalhava, buscando meu contato. Respondi de imediato, por e-mail. Fôramos amigos na adolescência, por que não haveríamos de retomar a conversa em idade adulta?

Foi um erro: o amigo que se dizia anarquista no passado agora era filiado ao Partido Comunista do Brasil (PCdoB) – migrara do Estado zero para o Estado total. Seu discurso estava irremediavelmente envenenado por duas toxinas que costumam aparecer juntas no caldo do fanatismo: a ideologia e o ressentimento. Seus fracassos pessoais eram todos atribuídos a supostos inimigos políticos. Se ele se saía mal nos nossos tempos de escola, era só porque um professor reaça não ia com a sua cara. Adiante, ele se formou em Direito, mas dizia que estava impedido de advogar por causa dos “neoliberais da OAB”. Quando sua cantilena conspiratória enveredou pelo antissemitismo, encerrei o papo.

Faz alguns meses, foi a vez de um bolsonarista buscar minha amizade – no caso, amizade virtual, no Facebook. Em uma olhada rápida na timeline do sujeito, descobri que ele mantinha um canal de vídeo. Em vários posts, queixava-se do Youtube, que não lhe permitia monetizar seu programa. Também ele era um perseguido político, cuja carreira de influenciador era barrada pelos esquerdistas do Google e do Meta. O fato, porém, é que ele era ignorado pela própria corrente política a que se vinculou. Como a direita bolsonarista não está mal servida de influenciadores, a concorrência é dura – e ele não conseguiu vencê-la: seus vídeos mais populares alcançavam 60 ou 70 visualizações, bem abaixo do mínimo necessário para a monetização. Recusei essa oferta de amizade.

A mentalidade conspiratória própria dos extremos ideológicos encontra uma energia patológica em fantasias de perseguição. O espírito do “nós contra eles” acentua-se quando em um grupo há consenso de que o “nós” representa os humilhados e ofendidos e o “eles” congrega os perversos e poderosos. Nesse mundinho radicalizado, o militante ganha prestígio entre seus pares apresentando credenciais de vítima do sistema: os neoliberais me impedem de trabalhar, os gigantes do Vale do Silício querem me calar.

Falei em fantasias de perseguição, mas, naturalmente, o efeito tende a se amplificar quando a perseguição é real. Em um artigo publicado no site Persuasion, a jornalista do The New York Post Rikki Schlott e o advogado e ativista da liberdade de expressão Greg Lukianoff atestam que a censura a extremistas tende a radicalizá-los. Quando lhe é negada voz na praça pública, o simpatizante de doutrinas odiosas isola-se entre aqueles que pensam como ele – uma câmara de eco que repete e reforça suas convicções.

Os autores contam com dados razoáveis para sustentar essas conclusões. Entre 2016 e 2018, por exemplo, os administradores da rede social então conhecida como Twitter expulsaram membros da alt-right, a direita bruta dos Estados Unidos. Em diferentes momentos desse período, foram banidos grupos nacionalistas como o Proud Boys e veículos como o Info Wars. A cada banimento em massa, a Gab, rede que se apresenta como Twitter da direita, tinha picos de adesões. “Meses em que houve expulsões em massa do Twitter respondem pelo dobro de novos membros que o Gab angaria em um mês típico”, diz um relatório do Network Contagion Research Institute (NCRI), instituto que monitora atividades extremistas on-line. “A censura ampara a formação de comunidades do ressentimento e não reabilita a pessoa censurada“, diz o cofundador do NCRI, Joel Finkelstein, em entrevista a Schlott e Lukianoff.

No Brasil, no entanto, os censores parecem acreditar que seus vetos e proibições têm poder redentor. Não digo que eles confiem na capacidade de regenerar extremistas pela mordaça, ou de converter golpistas em democratas por força de multa e prisão: me parece antes que eles esperam coagir a Horda Canarinha (e o PCO, partido nanico que conquistou a antipatia do alto Judiciário) a deixar de vez ruas e redes sociais. Mas movimentos políticos de massa não desaparecem por mandado.

A Folha de S. Paulo informou nesta segunda-feira, 4, que dois bolsonaristas que tiveram suas redes suspensas pelo TSE no ano passado foram multados por reincidir nos ataques ao sistema eleitoral e na incitação ao golpismo em publicações no X, o antigo Twitter. Alexandre de Moraes decidiu, em junho, que eles deveriam pagar 20 mil reais por cada dia em que as publicações ofensivas se mantivessem no ar. Em conjunto, as multas da dupla já somam 600 mil reais, segundo o jornal.

Os dois tuiteiros não teriam recebido a intimação que limitava os temas de suas postagens. A maioria dos juristas ouvidos pela Folha diz que isso invalidaria a aplicação de multa – como eles poderiam desobedecer uma ordem judicial sem tomar conhecimento dela? Mas essas questões processuais são aborrecidas. O que me interessa de fato é uma das reincidências multadas por Moraes.

Foi uma só publicação, em maio. A tuiteira transgressora compartilhou e comentou um post no qual um jornalista sugere que a popularidade de Bolsonaro é superior a de Lula. Isso seria “a mais pura verdade”, escreveu ela, e provaria que “eles [os petistas] não venceram a eleição e sim tomaram o poder”.

Confuso, mal redigido, o tuíte teve 61 visualizações.

Aqui não temos mais o sujeito que se vitimiza porque o Youtube não lhe deu uns trocos. Não é mais delírio conspiratório: a coitada que desperta a vigilância do TSE com um tuíte visto só 61 vezes ganhou pleno direito de se declarar perseguida.

Alexandre de Moraes costuma citar o rigor com que o Judiciário julga e pune golpistas e propagadores de fake news como uma evidência de que a democracia brasileira segue forte e inabalável. Pois agora vemos que uma opinião idiota em rede social, tendo alcançado só um punhado de leitores, já é considerada uma ameaça. A impressão que o caso me deixa é de uma democracia frágil e amedrontada. Torço para que seja mesmo só uma impressão.

 

Jerônimo Teixeira é escritor e jornalista

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  1. A República Judicativa do Brasil perdeu todo pudor em perseguir. Se o congresso não botar logo um freio, em breve não haverá mais limite a ser ultrapassado. É preciso restaurar o equilíbrio entre os poderes. As reformas propostas são muito boas: mandato fixo e limitação das decisões monocráticas. Acrescentaria uma representatividade obrigatória com 2-3 membros da magistratura, do MP, advocacia e defensoria. Também maioria absoluta para sabatina, com voto aberto. Ah, fim da "quarta instância".

  2. Mudar é o ato mais difícil da vida. É muito mais fácil racional nossos fracassos pelas ações de outros e conspirações mirabolantes de um sistema que vicia o jogo. É impossível esterilizar o debate público, o extremismo e sempre existirá. A estratégia tem que ser sanar a mente do povo e empurrar o extremismo para nichos sem relevância eleitoral. E isso se consegue apenas com exposição dessas ideias ao debate e credibilização da imprensa no seu papel de fiscal do poder.

  3. Gente como o Escalvado se alimenta desse caldo de cultura que se avoluma em ritmo veloz. Pessoas que se arvoram defensoras da liberdade de expressão ditando o que as pessoas podem falar, geralmente desrespeitando o sagrado direito garantido pela Constituição. O consórcio de mídia passa o pano.

  4. Muito bom e servindo de alerta àquelas pessoas que por vezes resolvem manifestar sua revolta em face de certas calamidades decisórias, obrigatórias, indigestas e fora da realidade geral normal da plebe… e dos cultos, claro!

  5. Infelizmente não é só uma impressão Jerônimo. O juiz Alexandre de Moraes se perdeu na própria vaidade e autoconfiança. Aliás, o STF inteiro. Deste ano em diante, os erros judiciários serão cada vez piores. Inclusive por que o STF terá o reforço do boçal Flávio Dino.

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