A guerra no STF
Não faz seis meses que uma convulsão política desencadeada pelos atos da militância bolsonarista contra o Supremo e o Congresso uniu, de forma quase unânime, os ministros do STF em torno do inquérito inconstitucional aberto para investigar supostas ofensas e ameaças aos magistrados. O placar de 10 a 1 e o discurso de autodefesa presente nos votos proferidos em junho transmitiram a impressão de que a corte estava pacificada, após divergências públicas durante votações importantes em plenário nos últimos anos, como a que revogou a prisão após condenação em segunda instância. Desde então, até ministros que não se falavam, como Gilmar Mendes e Luís Roberto Barroso, voltaram a conversar e o clima amistoso parecia reinar nos bastidores. Durou pouco. Logo a presidência do Supremo mudou de mãos e a composição da corte ganhou uma cara nova, alterando as forças no xadrez político da casa. Bastaram as primeiras ações do presidente Luiz Fux para tentar evitar a implosão da Lava Jato no Judiciário e as ruidosas reações de Gilmar para que a tensão voltasse a aumentar. Imaginava-se que ela pudesse baixar com o julgamento sobre a possibilidade de reeleição dos presidentes da Câmara e do Senado, mas o voto decisivo de Fux contra o relatório de Gilmar que rasgava a Constituição para beneficiar Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre jogou novo combustível na fogueira e, desde o último domingo, o clima no Supremo arde.
Nos últimos dias, acusações de traição, intrigas e ameaças de retaliação mostraram o que se passa na cúpula do Poder Judiciário, cuja competência precípua é zelar pela guarda da Constituição. A derrota doeu fundo sobretudo em Gilmar, relator do caso, que no dia seguinte ao seu infortúnio garantiu aos colegas que, se soubesse do placar desfavorável à reeleição de Maia e Alcolumbre, jamais teria liberado seu voto na última semana. Enfurecido, o ministro então passou a liderar um movimento de represália a Fux, considerado por ele um traidor por mudar sua própria decisão na última hora diante da pressão exercida pela opinião pública. À imprensa, Gilmar espalhou em “off” que a atitude do presidente do STF foi a “gota d’água” e marcava o fim de sua gestão na presidência da corte, que vai até 2022. A propósito, utilizar a imprensa amiga para atacar desafetos no Supremo é uma arma que Gilmar voltará a usar com mais frequência, conforme apurou Crusoé com auxiliares de ministros do STF. “Ele voltará a ser o velho Gilmar”, disse uma fonte do Supremo. Além dos petardos lançados em “off” contra Fux, o ministro também teria feito circular entre jornalistas parceiros a versão de que Barroso se comprometera a votar a favor do seu relatório, mas, ao fim e ao cabo, não honrou a promessa. A interlocutores, o presidente do TSE o desmentiu peremptoriamente – Barroso diz que apenas prometeu avaliar a possibilidade de reeleição “com a mente aberta”, o que nunca significou comprometimento com o voto a favor da eventual recondução de Maia e Alcolumbre ao comando da Câmara e do Senado, respectivamente.
Fontes ouvidas por Crusoé apostam que o primeiro revés de Fux por obra e graça de Gilmar e seu grupo será no julgamento da liminar concedida em janeiro que suspendeu por tempo indeterminado a criação do juiz das garantias, jabuti colocado no pacote anticrime aprovado em 2019 pelo Congresso. Na ocasião, Fux pontuou que a regra precisava ser analisada, porque pode ferir a autonomia organizacional do Poder Judiciário. A ala alinhada a Gilmar aposta que tem maioria no plenário para derrubar a liminar do presidente da corte.
Embora a “recondução para o mesmo cargo” nas mesas diretoras do Congresso, o que inclui as duas presidências, “na eleição imediatamente subsequente” seja expressamente vedada pela Carta Magna, no artigo 57, havia a expectativa até a semana passada de que seria possível formar maioria em torno da tese jurídica forjada por Gilmar Mendes. Mesmo antes do voto dele ser divulgado, na madrugada da sexta-feira, 4, no plenário virtual — formato de julgamento no qual os ministros apresentam os votos pela internet, sem a necessidade de sessão presencial ou por videoconferência –, já se sabia que o relator seria favorável à possibilidade de reeleição dos parlamentares do DEM. Em seu relatório, Gilmar sustentou que a vedação expressa da reeleição nas duas casas poderia ser “objeto de exceção” caso o Congresso “repute necessário para fins de preservação de sua autonomia constitucional”. Sem citar nomes, o ministro insinuou que a prática inconstitucional seria até “desejável” em “determinadas conjunturas” para assegurar a independência do Legislativo.
Na sequência, o relatório de Gilmar foi acompanhado pelos ministros Dias Toffoli, Alexandre de Moraes e Ricardo Lewandowski. Recém-empossado no Supremo por indicação de Bolsonaro, Kássio Marques apresentou um voto híbrido, permitindo apenas a reeleição de Alcolumbre e vetando a de Maia, o que convergia com os interesses bolsonaristas. Com cinco votos explicitamente contrários ao texto da Constituição, o contorcionismo jurídico encampado pelos magistrados foi amplamente destacado no noticiário e passou a ser duramente criticado por juristas de peso junto à opinião pública. Ciente do impacto que aquele julgamento causaria na reputação da corte, a ministra Cármen Lúcia ligou para Fux pressionando o presidente do STF a votar contra a reeleição e pedindo a ele que desse o primeiro voto contrário ao relatório de Gilmar. Mas Fux ainda não estava convencido do dano. Fontes do Supremo afirmam que o presidente havia sinalizado a Gilmar que endossaria o relatório dele. Foi o ministro Marco Aurélio Mello quem abriu a dissidência, divulgando seu voto contrário no fim da tarde de sexta, 4, seguido pelas duas ministras da corte. Para Carmen Lúcia, não haveria margem para outra interpretação do artigo 57. “A norma é clara, o português direto e objetivo”. Já Rosa Weber escreveu não ser possível romper os “limites semânticos” para “legitimar comportamentos transgressores da própria integridade do ordenamento constitucional”.
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