Foto: AlerjChiquinho, Domingos e Rivaldo: exemplos da degradação da política e da polícia no Rio de Janeiro

Destamparam o bueiro

 Delação do matador de Marielle Franco expõe as relações entre a polícia, a política e o crime organizado no Rio de Janeiro
29.03.24

A ideia de que o crime organizado se infiltrou na política e na polícia do Rio de Janeiro não é nova. Ela está até em filmes, como os dois Tropa de Elite. Mesmo assim, a delação premiada do miliciano Ronnie Lessa, homologada em meados deste mês pelo ministro Alexandre de Moraes, do STF, provocou um choque. Lessa, matador da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes, apontou os irmãos Domingos e Chiquinho Brazão como mandantes do assassinato. O primeiro é conselheiro do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro; o segundo, deputado federal que até pouco tempo atrás, licenciado em Brasília, ocupava uma secretaria na prefeitura carioca. Mais impactante ainda foi a revelação de que Rivaldo Barbosa, ex-chefe da Polícia Civil do Rio, não apenas arquitetou a execução de Marielle como também trabalhou para que não houvesse punições, operando uma engrenagem que impede a investigação de crimes relacionados a milícias e ao jogo do bicho. Como disse a Polícia Federal no relatório que embasou a prisão dos três figurões no último domingo, 24, a delação de Lessa “destampou um bueiro” que agora precisa ser limpo até o final.

O assassinato de Marielle, segundo o inquérito da PF, começou a ser planejado em setembro de 2017. Um primeiro encontro ocorreu no entorno do Hotel Transamérica, na Barra da Tijuca. De dentro de um carro, os irmãos Brazão explicaram aquilo que desejavam a Ronie Lessa e ao ex-PM Edmilson Oliveira da Silva, vulgo Macalé, que intermediou a aproximação. Depois disso, houve mais duas reuniões preparatórias do crime, finalmente executado na noite de 14 de março de 2018, quando Marielle, uma assessora e o motorista Anderson Gomes saíam de uma reunião política na Rua Joaquim Palhares, no cento do Rio. Um veículo prata emparelhou com o deles e treze tiros foram disparados de uma submetralhadora HK MP5. Quatro atingiram a vereadora na cabeça e no pescoço. Anderson teve três perfurações nas costas. Os dois morreram na hora. Apenas a assessora Fernanda Chaves escapou com vida. O motorista do carro era Élcio Queiroz, outro ex-policial militar. O atirador era Ronnie Lessa. Os Brazão lhe teriam oferecido terrenos e o comando de uma milícia nos bairros que controlavam politicamente. 

Em sua colaboração premiada, Lessa disse que Chiquinho e Domingos Brazão  encomendaram a execução de Marielle porque ela atrapalhava os seus interesses em Jacarepaguá, berço eleitoral da família, e outros bairros da zona oeste do Rio de Janeiro. Ao longo de 2017, ela e outros vereadores de seu partido, o PSOL, haviam feito dura oposição a um projeto de autoria de Chiquinho, então também vereador, que permitia regularizar construções ilegais naquelas áreas. Em uma das votações da lei, ele chegou a reagir de forma bastante agressiva ao voto de Marielle. Segundo a PF, depois de infiltrar um informante no PSOL, os Brazão também descobriram que a vereadora procurava catequizar moradores de comunidades para que não aderissem a loteamentos clandestinos controlados por milícias na zona oeste. Os irmãos, segundo a PF,  são parceiros de milicianos na grilagem de terras e na venda desses lotes. Os investigadores anotam que Domingos, em particular, “chegou a ser alvo de denúncia pela prática criminosa em 2007, quando teria invadido uma área de proteção ambiental na Vila Valqueire, em Jacarepaguá”. Marielle, portanto, interferia sobretudo nesses interesses “imobiliários”.

Para quem tem alguma familiaridade com a política municipal do Rio de Janeiro, ver os irmãos Brazão ligados a uma trama de assassinato não chega a ser  motivo de  grande surpresa. As primeiras suspeitas de atividades criminosas datam de mais de vinte anos, antes de eles entrarem na política, quando exploravam as empresas Sangue Bom Autopeças e a Ferro Velho Nova Entrada. Ambas seriam, na verdade, desmanches de veículos furtados e revendas ilegais de autopeças.

Domingos foi deputado estadual entre 1999 e 2015. Nesse período, teve Robson Calixto como um de seus assessores parlamentares. Ambos também foram sócios na empresa Terra de Canaã Construções e Transportes. Segundo a PF, Calixto era um dos responsáveis por arrecadar fundos para as campanhas eleitorais da família Brazão. E fazia isso, em parte, extorquindo moradores do bairro Taquara. “Robson Calixto figura como miliciano em algumas notícias de fato encaminhadas pelo Disque-Denúncia, datadas de maio e junho de 2018, onde é apontado como o responsável por arrecadar valores auferidos por grupo paramilitar organizado”, diz o inquérito. Um dos relatos do Disque-Denúncia foi  transcrito pelos policiais: “Próximo à UPP de Taquara, localiza-se uma igreja evangélica do Silas Malafaia, onde pode ser encontrado o miliciano ‘Robson Calixto Fonseca’, vulgo Peixe, nos dias 15 a 30 deste mês, para receber a quantia que é arrecadada na região. Ele anda armado. É policial e segurança particular do deputado Domingos Brazão.”

Em 2018, Domingos já não atuava na Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro. Ele era conselheiro do Tribunal de Contas do estado, mas estava afastado das funções pela Justiça, investigado por integrar um grande esquema de corrupção no coração do órgão. Em 2017, ele e outros cinco conselheiros do TC-RJ chegaram a ser presos por uma semana na Operação Quinto do Ouro, um desdobramento da Lava Jato. A operação teve como base a delação premiada de Jonas Lopes, ex-presidente do TC-RJ, e também atingiu o ex-governador Sérgio Cabral e o ex-presidente da Alerj Jorge Picciani. Os conselheiros foram acusados de receber propinas para fazer vista grossa sobre desvios em obras no estado. Isso incluiria uma mesada de 70 mil reais para cada um, paga pela Federação das Empresas de Transporte de Passageiros do Estado do Rio (Fetranspor). No fim de 2021, o ministro Nunes Marques, do STF, julgou que havia “excesso de prazo de afastamento” no caso de Domingos Brazão e autorizou o seu retorno ao cargo. Até hoje o processo sobre os desvios no TC-RJ não foi julgado.

Vale notar que mesmo a vinculação de Domingos Brazão ao assassinato de Marielle Franco não é novidade. Em setembro de 2019, cerca de um ano e meio depois do crime, a então Procuradora-Geral da República Raquel Dodge tentou federalizar o caso. Ela enxergou indícios de que Brazão não era apenas autor intelectual do crime, como ainda havia participado de um conluio com policiais para obstruir a Justiça, tentando atribuir a responsabilidade pela execução de Marielle ao ex-vereador Marcelo Moraes Siciliano – também ele suspeito de envolvimento com milícias.

Dodge fez um diagnóstico da situação: “O Estado do Rio de Janeiro é incapaz de enfrentar (…) a contaminação do aparelho policial pelos milicianos, não tendo adotado as medidas necessárias para pôr fim aos gravíssimos problemas que geram inaceitável situação de impunidade e insegurança naquele Estado, deixando de prover os meios necessários à completa investigação e à integral e adequada persecução penal dos autores dos delitos. Houve falha e insuficiência do serviço de investigação e mantém-se ambiente comprometido e desfavorável à apuração isenta dos fatos relativos ao(s) mandante(s)”.

 

Foto José Cruz/ Agência Brasil.Foto José Cruz/ Agência Brasil.Os mandantes do assassinato de Marielle chegam a Brasília – Foto: José Cruz/Agência Brasil
 

Ao final, as investigações não foram transferidas para a esfera federal, em parte por oposição da própria família de Marielle e de amigos como Marcelo Freixo, então político do PSOL. Jair Bolsonaro havia assumido a presidência da República havia pouco tempo e Sergio Moro era o ministro da Justiça. A ideia de que o desvendamento do assassinato pudesse ficar a cargo de pessoas do campo ideológico oposto não foi bem aceita por quem havia sido próximo da vereadora. “Acreditamos que Sergio Moro contribuirá muito mais se ele permanecer afastado das apurações”, afirmaram eles em uma nota pública.

A prisão do delegado Rivaldo Barbosa deixou claro o quanto foram precisas as palavras de Raquel Dodge a respeito do “ambiente comprometido e desfavorável à apuração isenta dos fatos”. Segundo o depoimento de Ronnie Lessa, Barbosa foi fundamental principalmente na tarefa de confundir as pistas sobre o crime. Ainda na fase de planejamento, ele determinou que o atentado não poderia acontecer nos trajetos habituais da vereadora de casa para a Câmara Municipal. Era uma precaução para dificultar a caracterização do crime como sendo político, o que poderia acarretar o envolvimento da Polícia Federal logo na primeira hora.

Naquele momento, Barbosa era o responsável pela divisão de homicídios da Polícia Civil do Rio de Janeiro e poderia influir na investigação. Graças ao que parece ser uma coincidência, ele foi alçado à posição de chefe de toda a corporação um dia antes do assassinato. Isso ampliou ainda mais o seu controle sobre os procedimentos. Segundo a PF, a investigação falhou em reunir provas, perdeu materiais coletados e até criaram enredos falsos. Um dos exemplos diz respeito às imagens de câmaras instaladas na rua onde Marielle foi morta. O agentes deixaram de analisar algumas câmeras, em outros casos viram as imagens mas não solicitaram o seu armazenamento, em outros ainda só juntaram o material ao inquérito quando isso se tornou incontornável. A polícia também chegou a apreender o telefone celular do homem responsável por clonar a placa do veículo prateado de onde Ronnie Lessa disparou contra suas vítimas, mas ele se perdeu ao ser encaminhado para perícia. Quanto à hipótese de que Marcelo Siciliano teria sido o mandante do assassinato, ela surgiu em outubro de 2018, numa denúncia anônima feita por telefone. Ela seria descartada como uma fabricação cerca de um ano mais tarde, quando Raquel Dodge analisou o caso com apoio da PF e encontrou indícios que apontavam, na verdade, para Domingos Brazão.

O relatório da PF afirma que o caso Marielle não foi nem o primeiro, nem o último em que Rivaldo Barbosa e seus subordinados puseram em prática uma série de artimanhas para impedir a resolução de crimes relacionados a milícias ou ao jogo do bicho. Um depoimento do miliciano Orlando Curicica incluído no inquérito fala da existência de um “sistema de pagamento mensal” das milícias para as delegacias da Polícia Civil  no Rio de Janeiro. A Delegacia de Homicídios (DH) chefiada por Barbosa receberia todos os meses entre 60 mil e 80 mil reais. Os agentes federais também ouviram o  delegado Brenno Carnevale, que trabalhou na DH. Ele disse que eram frequentes os sumiços de inquéritos e materiais apreendidos. Afirmou não se lembrar de “qualquer homicídio esclarecido que resultasse na prisão ou denúncia contra contraventor ligado ao jogo do bicho”.

Cinco investigações que não deram em nada são citadas pela PF. Uma delas diz respeito ao assassinato de José Luis de Barros Lopes, conhecido como Zé Personal. Lopes era genro do falecido biqueiro Waldomiro Paes Garcia e foi morto a tiros dentro de um centro espírita em setembro de 2011. O caso ficou sob alçada de Barbosa durante sete anos, sem que ele desse prosseguimento às investigações. Um segundo exemplo foi o assassinato de Marcos Vieira de Souza, vulgo Facon. Fuzilado em setembro de 2016, Falcon era subtenente da Polícia Militar e presidente da escola de samba Portela. Segundo a PF, Barbosa apontou dificuldades incomuns para o esclarecimento da morte de Falcon. Seu intuito, dizem os investigadores, era lucrar enquanto corpos se “empilhavam pela região metropolitana do Rio de Janeiro”.

Nos últimos dias, o mundo político começou a se distanciar dos irmãos Brazão. No Rio de Janeiro, o prefeito Eduardo Paes exonerou seis nomes ligados a Chiquinho, que até o final do ano passado fazia parte de seu secretariado. Também não parece haver muita disposição na Câmara, em Brasília, para salvar o mandato do deputado de uma cassação. Seus pares atrasaram a análise da ordem de prisão expedida contra ele por Alexandre de Moraes, mas isso é mais um capítulo do confronto com o STF a respeito das imunidades parlamentares do que uma demonstração de apreço pelo deputado fluminense.

Até recentemente, contudo, tanto o prefeito Eduardo Paes quanto o governador do Rio de Janeiro Cláudio Castro faziam questão de demonstrar seu apreço pelos Brazão. “Quem mais representa Jacarepaguá, quem mais briga por Jacarepaguá, é a família Brazão!”, disse Paes em discurso no ano passado. Na época, ele participava do lançamento da pré-candidatura de Kaio, filho de Domingos, a vereador. Cláudio Castro fez elogio parecido, também no ano passado: “Jacarapaguá e o Rio de Janeiro têm representantes legítimos  e esses são a minha querida família Brazão!”  Tudo isso, apesar do histórico perturbador dos irmãos. Como diz a PF a respeito de Domingos e do assassinato de Marielle, “muitas foram as chances que o poder público teve de frear a expansão de suas atividades, antes que elas desaguassem no homicídio ora investigado”.

No dia em que os Brazão e Rivaldo Barbosa foram levados à cadeia, o diretor-geral da PF Andrei Rodrigues afirmou que as investigações sobre os mandantes e os intermediários envolvidos na morte de Marielle Franco estão encerradas. O inquérito está bastante calcado na delação de Ronnie Lessa e isso constitui uma fragilidade que os advogados provavelmente tentarão explorar. Em inúmeras ocasiões nos últimos anos, durante julgamentos relacionados à Lava Jato, o STF mandou arquivar processos em que julgou faltarem provas que corroborassem uma delação. Existe a expectativa, no entanto, que informações venham a ser descobertas em computadores, celulares e outros materiais apreendidos com os suspeitos. Segundo Rodrigues, isso poderia dar origem a novas diligências ou até mesmo a novas investigações.

O esforço de apuração precisa continuar. Por mais importante que seja a resposta à pergunta tantas vezes repetida – “Quem mandou matar Marielle?” –  a prisão dos criminosos não pode ser vista como um ponto de chegada. O quadro de degradação sistêmica da política e da polícia do Rio de Janeiro ficou exposto à vista de todos, com cheiro e cores mais fortes do que nunca. A história não se limita a Domingos, Chiquinho e Rivaldo. É preciso ir além deles.

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  1. Desculpem, mas o Rio de Janeiro é um "território liberado", em construção desde o governo do Sr Brizola que fez um pacto com traficantes. A partir daí a "coisa" só vem "evoluindo"(milícias, facções dissidentes etc) . Hoje temos um pedaço do Brasil aos moldes da Colômbia do Sr Pablo Escobar, guardada as devidas proporções. A estrutura do Estado está à disposição do crime, lederado, principalmente pelas milícias que têm um braço "legal", já que provêm de autoridades.

  2. Políticos sendo políticos. Usando a máquina ao seu favor, um espelho do interior do país. Aonde famílias se perpetuam no poder.

  3. Faiô ... acusem seus adversários dos crimes que você cometeu (decálogo comunista) ..... o culpado é o mordomo ou o lord? o Rio é o khu fedido do mundo.

  4. ja existe um enredo real para o futuro filme Tropa de Elite 3. nao tem saida se nao yem punicao para os bandidos. O rio se desvaloriza com a impunidade. Pobre Rio de Janeiro.

  5. Mais uma vez o Rio é apenas uma escotilha aberta para o que acontece no resto do país. Ou alguém tem dúvida sobre quanto polícia, políticos e o crime nesse país se retroalimentam? Vejam o que foi feito com a lava-jato. Com a descondenação do cachaceiro e seus cúmplices. Carta-branca para para os bandidos. Sem esperanças. Meta é sair daqui. Chega!

  6. Não querem aprofundar as investigações por razões óbvias: podem chegar às alturas e isso não interessa. Tá bom aí.

    1. Se pensarmos que as declarações dadas por Marcos Valério sobre quem é o mandante-chefe do assassinato de Celso Daniel, para evitar que ele botasse a boca no trombone, podem ter um fundo de verdade... esse mandante ainda pode estar por aí ainda aprontando das suas. Marielle era uma pedra no sapato dos bandidos, de esquerda e de direita, por que seria diferente com ela? Celso Daniel tb era petista assim como Toninho do PT. Atrapalhou? Dançou!

  7. O bueiro que a Lava-Jato abriu foi devidamente tampado pelo STF. Quando se trata de tratamento de esgoto o judiciário é perito em esconder a tubulação.

  8. Crime organizado nunca se limita a uma área de atuação. Esses foram de grilagem à construção ilegal, passando pela venda de sentenças e culminando em assassinato. Somos todos reféns.

  9. Em resumo. Petistas acusaram Bolsonaro de ter participação em um crime em q um dos autores havia sido preso pela Lava a Jato Onde a tentativa de "federalização" havia sido trazida por uma PGR indicada pelo Temer mas a permanência da investigação no RJ foi defendida por um futuro indicado do Lula para a Embratur.

  10. Faz tempo que a cúpula do poder no Rio está dominada pelo crime. Parece que não se salva ninguém. Dá medo igual ser parado por bandidos ou policiais naquele estado. Triste

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