Bruno Spada/Câmara dos DeputadosComissões da Câmara, onde se dão um dos primeiros passos para a definição das emendas

A centralidade das emendas parlamentares

Repasses possuem, hoje, uma função sistêmica que estrutura o processo decisório nacional, o desenho das políticas públicas e tensiona os principais grupos políticos do país
16.02.24

É preciso reconhecer a centralidade das emendas parlamentares para o funcionamento da política brasileira. Se, lá atrás, lhe foi atribuído um papel secundário, de mera graxa que ajudava a sincronia entre o Executivo e o Legislativo, hoje constituem uma das principais variáveis do modelo de governança política do país, deslocando o eixo de poder para o Congresso e permitindo que deputados e senadores consolidem uma geografia política do país.

Sem entrar no campo da corrupção, problema ao qual as emendas sempre apareceram associadas, elas possuem, hoje, uma função sistêmica que estrutura o processo decisório nacional, o desenho das políticas públicas e tensiona os principais grupos políticos do país, tendo sido o centro do discurso de abertura do ano do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL): “fundamental relembrar que nossa Constituição garante ao Poder Legislativo o direito de discutir, modificar, emendar para, somente aí, aprovar a peça orçamentária oriunda do Executivo.”

As emendas, indicações de despesas que os parlamentares podem fazer ao Orçamento, aparecem na literatura como um dos elementos que o governo usa para formar base parlamentar em um sistema partidário ultrafragmentado e pouco disciplinado. Embora fosse um direito de todo deputado e senador levar individualmente recursos para as suas bases, na vida real, só tinha sucesso quem estivesse alinhado ao governo nas votações congressuais.

O efeito prático do controle do Orçamento era avassalador. O índice de dominância legislativa, isto é, do percentual de projetos aprovados pelo Congresso que tiveram origem no Executivo superou 90% nos dois governos FHC e Lula e no primeiro governo Dilma Rousseff, mesmo com o PT mal ocupando 20% das cadeiras. Nessa época, era comum escutar que “oposição é luxo de rico”, ou seja, a não ser que o parlamentar tivesse total condição de se financiar eleitoralmente, era imperativo para ele fazer parte da base e obter pedaços do orçamento para o seu reduto.

A relação entre emendas e reeleição é o que define sua importância. Se, em um primeiro momento, sugeriu-se que as obras feitas na base com as emendas eram politicamente creditadas à reputação do deputado ou do senador, logo se verificou que esse era um processo difícil. Mesmo que uma ponte ou um colégio fosse construído com recursos de uma emenda, quem executa é o município ou o governo do estado. Ou seja, na melhor das hipóteses, quem levou o dinheiro que tornou a obra possível vai ter que dividir o palanque com o prefeito ou o governador.

Sendo complicado para o eleitor dar o crédito correto, passou-se a buscar que outro tipo de ganho poderia ser atribuído ao autor da emenda. Outra hipótese levantada foi a de que a principal vantagem em levar uma obra para o município era aproximar o parlamentar de potenciais doadores de campanha, isto é, das empresas de construção ou de prestadoras do serviço contratado.

Com o fim da doação de empresas para políticos, as emendas perderam parte do seu valor de aproximação entre políticos e potenciais financiadores, a não ser à margem da lei. A partir daí, passou a ser importante que deputados e senadores investissem em mecanismos de reconhecimento pelo benefício proporcionado pela emenda. Por exemplo, circula em Brasília proposta de obrigar que as obras realizadas com o recurso de emendas tenham placa com identificação do nome do parlamentar responsável por ele.

Mas o fato é que a importância das emendas para a reeleição foi multiplicada com o aumento do seu volume. Se, antes, um parlamentar que executava 6 milhões de reais era considerado um campeão da modalidade, atualmente cada deputado e senador tem pelo menos 5 vezes mais, independente se faz parte do governo ou não. A depender do tamanho das cidades que servem de base eleitoral, não é exagero que afirmar que o parlamentar passa a ser uma das principais fontes de recurso da região, sendo responsável por viabilizar a gestão municipal ou abastecer toda uma rede de serviços públicos e ser o principal elemento de dinamização da economia local. Com isso, uma lógica antiga de importância do voto pode ser revertida, com a escolha do representante parlamentar ser mais decisiva para o eleitor do que a definição do presidente.

Considerando que cada parlamentar, mesmo os petistas, tem clarividência do poder das emendas sobre o seu futuro eleitoral e independência política, qual a chance de que se possa voltar, por meio de uma reforma legal, ao status anterior?

Essa pergunta causa arrepios porque a dinâmica de competição entre Legislativo e Executivo, hoje com claros efeitos negativos sobre a racionalidade das políticas públicas, tende a não se resolver por acordo e uma intervenção do Judiciário tem boa possibilidade de acontecer, sendo interpretada como violência política pelo lado perdedor. O fato é que o Orçamento está no centro do modelo de governança que, hoje, está em disputa e as emendas provaram, mais uma vez, a validade da regra de ouro do poder, qual seja, quem tem o ouro, tem o poder.

 

Leonardo Barreto é cientista político e diretor da VectorRelgov.com.br

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  1. As emendas não deveria existir pois fragmenta totalmente a política de investimento nacional, não havendo direcionamento claro nem delineação de objetivos ou áreas chave a satisfazer. A participação do legislativo no orçamento deveria ser a da sua aprovação e, trabalhando com o executivo, escrever nele os planos e prioridades de investimento nacional.

  2. A centralidade das emendas parlamentares. Quem tem emendas do orçamento tem poder. Sistema viciado e favorável a corrupcao de maus parlamentares em conluio com maus prefeitos. (Lira Sapucai) Excelente artigo Crusué.

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