Rodrigo Ferreira/CBF via Flickr

O complicado cartão azul

Se a essência do futebol for a simplicidade, qualquer acréscimo ao jogo será um desvio, por mais justiça que ele porventura venha a trazer às partidas
16.02.24

Chesterton diz que tradição é a “democracia dos mortos”. “Significa dar votos à mais obscura de todas as classes, os nossos antepassados”, acrescenta em Ortodoxia, antes de dizer que “a tradição se recusa a submeter-se à pequena e arrogante oligarquia daqueles que simplesmente andam por aí”. É por isso que Carlo Ancelotti e Jürgen Klopp, dois dos principais treinadores de futebol do mundo, não gostaram de ouvir falar no cartão azul.

O jornal britânico The Telegraph assustou o mundo do futebol ao revelar que o International Football Association Board (IFAB), responsável por zelar pelas regras do jogo mais popular do mundo, planeja iniciar os testes de uma punição intermediária entre os cartões amarelo e vermelho, cuja aplicação deixaria o jogador punido fora de campo por 10 minutos.

Como o Telegraph disse que os testes começariam pela Copa da Inglaterra e pela FA Cup feminina, a Fifa se apressou em esclarecer que “os relatos do chamado ‘cartão azul’ nos níveis de elite do futebol são incorretos e prematuros”.

“Quaisquer testes desse tipo, se implementados, devem se limitar a testes de forma responsável em níveis inferiores, uma posição que a Fifa pretende reiterar quando este item da agenda for discutido na Assembleia Geral do IFAB em 1º de março”, completa a nota.

Questionado sobre o assunto, o técnico do Liverpool disse que introduzir uma nova forma de punição só vai complicar as coisas. “A discussão será: ‘Foi um cartão azul, deveria ser um cartão amarelo, agora ele está 10 minutos fora; nos velhos tempos, teria sido um cartão vermelho ou apenas um amarelo’”, comentou o alemão, que anunciou que treinará o time inglês apenas até o fim da atual temporada.

Klopp diz que não é contra os testes anunciados pela Fifa, mas que a ideia não lhe parece “fantástica, de imediato”. “A verdade é que não consigo me lembrar que essas pessoas tenham tido uma ideia fantástica. Se é que alguma vez tiveram uma”, debochou.

O treinador do Real Madrid, que até outro dia era esperado na seleção brasileira, também disse que acrescentar um cartão seria um complicador. “A ideia geral que tenho das regras é tentar simplificar ao máximo. Simplificar um regulamento que a cada ano fica mais complicado. Não sei se o cartão azul simplifica ou complica o trabalho do árbitro”, comentou o italiano.

O cartão azul seria uma importação do rugby, primo do futebol, e aproximaria o esporte bretão de um parente ainda mais distante, o futebol americano, que vive mudando suas regras na expectativa de fazer o jogo cada vez atraente — os jogadores do San Francisco 49ers admitiram que não sabiam da nova regra da prorrogação inaugurada no Super Bowl deste ano. Apesar de serem da mesma família, esses esportes parecem ter naturezas totalmente diferentes.

A ânsia por atenção do futebol americano vai expandindo o interesse pela modalidade mundialmente — a NFL terá suas primeiras partidas disputadas no Brasil e na Espanha em 2025, como já vinha ocorrendo na Inglaterra e na Alemanha. Já futebol é jogado nesses países — e em locais onde a liga americana nem sonha em chegar ainda — há mais de um século, exatamente por causa de sua simplicidade.

O goleiro vai poder receber o cartão azul? Um jogador de linha ocuparia sua posição por 10 minutos? Quem recebeu amarelo seria expulso ao receber um azul e vice-versa? O jogador punido voltaria a campo com a bola rolando ou apenas após o jogo ser interrompido?

Os cartões amarelo e vermelho foram introduzidos na Copa do Mundo de 1970, para ajudar os árbitros a conduzir as partidas e evitar carnificinas. Pode ser que o cartão azul contribua para melhorar o andamento dos jogos, principalmente no que diz respeito à cera ou a simulações para tentar enganar o juiz, um hábito disseminado especialmente no Brasil.

O VAR foi adotado para aumentar a justiça nas partidas, mas acabou virando mais um elemento para discussão, por interferir demais ou de menos nos jogos. O cartão azul seria mais um elemento para erro e debate. Se a essência do futebol for a simplicidade, qualquer acréscimo será um desvio, por mais justiça que porventura venha a trazer às partidas.

Chesterton fala em um dos ensaios de A coisa sobre o paradoxo da cerca. Segundo ele, o tipo mais moderno de reformador vai até a cerca e diz: “Não vejo utilidade nisso; vamos nos livrar dela”. Já o tipo de reformador “mais inteligente” dirá: “Se você não vê a utilidade disso, certamente não vou deixá-lo se livrar dela”.

A cerca só deve ser retirada quando estiver claro para que ela serve. O mesmo vale para quem pretende erguer uma cerca — ou criar um cartão.

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  1. Parece que a lei de parkinson chegou no futebol e tem gente sem fazer nada buscando criar novas regras pra dizer que está trabalhando

  2. Não é necessário criar nova forma de punição para cera ou simulação: cartão amarelo, seguido de vermelho é mais do que eficiente e justo, basta os juízes terem coragem de impor a regra do jogo e punir os infratores. Introduzir mais um mecanismo de punição, sempre baseado na interpretação subjetiva do juíz, tantos eles péssimos, é uma ideia terrível

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