Clara Lieu via FlickrNão sei se encontrei a alegada “dinâmica golpista” na fala presidencial, mas vi a mentalidade de tilápia alcançar suas últimas consequências

Tilápias não sabem sambar

Uma reflexão carnavalesca sobre o derrotismo da reunião ministerial de julho de 2022, em que Jair Messias Bolsonaro rezou para que o povo brasileiro "não sucumbisse ao comunismo"
16.02.24

Ruim da cabeça, doente do pé: não pulo Carnaval. Minha cadeiras duras não respondem ao tamborim, meu pulso lento não bate junto com o bumbo. Os sambas que mais aprecio são aqueles que se podem ouvir sentado – Preciso me encontrar, de Cartola, Timoneiro, de Paulinho da Viola, Desde que o samba é samba, de Caetano e Gil, ou qualquer samba interpretado por João Gilberto. Não é ranhetice da idade: desde sempre fui assim, doente da cabeça, ruim do pé.  

Não faço parte da bagunça, mas simpatizo com esses dias de permissividade sexual e espontaneidade popular (excluo daí o carnavalzinho oficialesco em que o Centrão desfila no sambódromo com uma escola de samba financiada por uma cidade que está literalmente afundando). A caminho de um boteco para o almoço do sábado passado, minha família cruzou com vários blocos de rua no Centro de São Paulo. Achei divertido ver tantas mulheres em trajes diminutos (para escândalo do reacionarismo carola) e homens em roupas femininas (para horror da patrulha progressista). Menos agradável foi o número de foliões que encontramos urinando nos muros e paredes (quase todos homens, mas vi pelo menos uma mulher agachada no meio fio). Que fazer? Trata-se de um evento de massa com alto consumo de cerveja…  

Em um improvável momento proustiano, o odor da urinação pública me transportou ao Carnaval de 2019, quando o então presidente Jair Bolsonaro divulgou no Twitter (atual X) o infame golden shower em um bloco gay de São Paulo. Considerações morais à parte, resta o fato de que o caso não merecia a atenção de um chefe de Estado. O presidente do Brasil, em particular, não deveria reduzir uma festa de imensa importância cultural e econômica a uma cena isolada – um episódio que, a despeito do clima de “liberou geral” próprio do Carnaval, não é representativo do que acontece nas ruas: aliviar-se nas calçadas é prática comum nos festejos, mas são poucos que transformam isso em performance. A escatologia não define o Carnaval.    

A cabeça de Bolsonaro funciona assim, com recortes parciais da realidade, que ele acomoda e distorce segundo suas obsessões ideológicas. É uma estreiteza intelectual que, em um texto de 2022, caracterizei como “pensamento písceo” – alusão ao entusiasmo de Bolsonaro pelo cultivo de tilápias em Itaipu, projeto de seu secretário da Pesca.   

Depois do boteco, dediquei um tempo infeliz do feriado ao vídeo da reunião ministerial de 22 de julho de 2022, uma das peças de acusação que pesam contra Bolsonaro. Não sei se encontrei a alegada “dinâmica golpista” na fala presidencial, mas vi a mentalidade de tilápia alcançar suas últimas consequências. Um exemplo especialmente tortuoso: Bolsonaro pinçou um episódio singular da longa história de repressão política em Cuba – o fuzilamento do general Arnaldo Ochoa, em 1989 – e usou como base para negar que Dilma Rousseff (o nome não é citado, mas está claro de quem se trata) tenha sido torturada, ou até que a ditadura militar brasileira tenha praticado a tortura. Pois se filhote de ornitorrinco bebe leite, a vaca não pode ser um mamífero, certo? 

A longa arenga aos ministros revelou um presidente acuado pelo crescimento da candidatura adversária. Um país cristão como o Brasil, insistiu Bolsonaro, jamais elegeria Lula. E com a aprovação da “PEC das bondades”, que aumentava o valor do Auxílio Brasil (mas não era eleitoreira, enfatizou o presidente na reunião), a candidatura da situação conquistaria pelo menos de 70% dos eleitores. Mesmo assim, em outubro, Bolsonaro teria apenas 49% dos votos, e Lula venceria em primeiro turno, graças à manipulação das inauditáveis urnas eletrônicas. A fraude, afirmou Bolsonaro, não se limitaria à eleição do presidente: seria “geral”, barrando os candidatos da direita.  

(A profecia, como sabemos, falhou: Lula não venceu no primeiro turno e o PL garantiu uma bancada substancial no Congresso. Jorge Seif, o homem das tilápias de Itaipu, foi eleito senador). 

A certa altura da reunião, Bruno Bianco, advogado-geral da União, tomou a palavra para dizer que tudo o que seu chefe exigia era uma eleição limpa. Estava claro, porém, que ela só seria considerada limpa se Jair Bolsonaro saísse vencedor. A tal “dinâmica golpista” transparece nessa inconformidade com o resultado das urnas, mas creio que ela só se torna clara no contexto das demais revelações da operação Tempus Veritatis. Com poucas exceções, os ministros presentes permanecem em silêncio e não podem ser acusados de ter conhecimento de uma trama golpista. Só o general Heleno comete a indiscrição de falar das atividades suspeitas da Abin, mas acaba cortado por Bolsonaro. 

Em uma afirmação extravagante até para seus padrões, Bolsonaro disse que “nós somos a última democracia do mundo”. Também arriscou uma oração ao deus da paranoia: Meu Deus, não deixe o povo experimentar o comunismo”. Esse tom patético dominou sua fala, mesmo nos momentos de maior exaltação. Pois Bolsonaro falou o tempo todo como um derrotado. A mentira das urnas fraudadas era a boia ilusória em que tentou se agarrar para não ser afogado pela realidade. Acabou afundando ainda mais: em uma competição tão apertada, faria melhor se revisasse suas estratégias de campanha em vez de atacar o sistema eleitoral.   

Em um momento autodepreciativo que seria triste se não fosse ridículo, Bolsonaro especula que foi só por um acidente que uma figura como ele – “deputado de baixo clero, escrotizado (sic) dentro da Câmara, sacaneado, gozado”  – chegou à Presidência. Como de costume, está errado: da falsa prosperidade lulista à debacle de Dilma, a tragédia nacional estava toda armada para que Jair Bolsonaro subisse ao Planalto. 

Parece que ele agora está perto de ser legalmente emparedado. Pode ser seu fim, mas não será necessariamente o fim do bolsonarismo. Como naquele Carnaval do conto de Edgar Allan Poe, por um bom tempo ainda ouviremos seu guizo sinistro atrás da parede.   

 

Jerônimo Teixeira é jornalista e escritor

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
  1. Pois é, texto irretocável, mas preferiria que fosse só anedótico. Pensar que a horda dos bolsonaristas ainda acredita que as urnas foram fraudadas é o cumulo da estupidez desse povo.

  2. Bom. Não apenas por causa do conteúdo. Também pela forma: prosa fluida, ironia n9o ponto (não gosto de ironia bem passada) etc.

  3. Melhor teria sido o autor tentar cair na pagodeira. Ficar em casa e ainda ver vídeo "golpista" só pode gerar mesmo muito azedume. Tem um ano para aprender a sambar no pé. Tem mais vantagens.

Mais notícias
Assine agora
TOPO