A atriz Darlene Glória em cena de Toda Nudez Será Castigada (1973)Darlene Glória em Toda Nudez Será Castigada: "Quem te fala é uma morta!" - Foto: Reprodução/Prod. Cinematográficas Roberto Farias

O culto aos mortos na cultura brasileira

Gilberto Freyre e Nelson Rodrigues ajudam a entender os traços do catolicismo e da reverência aos mortos no modo de ser nacional
10.11.23

“Herculano, quem te fala é uma morta! Eu morri, me matei! Você pensa que sabe de tudo… mas não sabe de nada!”. Assim começa a peça Toda Nudez Será Castigada, de Nelson Rodrigues. E também a adaptação cinematográfica de Arnaldo Jabor, obra essencial do cinema brasileiro.

A obra inteira de Nelson Rodrigues – o maior dramaturgo brasileiro – tem uma relação especial com o tema da morte. Nisso também, sua obra é profundamente brasileira.

Evidentemente, a morte é um tema recorrente na literatura universal. E não só na literatura. Platão diz que filosofar é aprender a morrer, a filosofia de uma forma geral trata exaustivamente desse tema. E também, é claro, a religião.

A morte na obra de Nelson Rodrigues não é um tema metafísico, alheio à vida, é elemento central da vida, do amor, do sexo. A morte chega a ser desejada – não só pelos personagens, mas por ele próprio.

A Falecida, no cinema interpretado pela jovem Fernanda Montenegro num papel memorável, deseja a morte e um funeral luxuoso. Esse é o seu grande desejo – frustrado pelas descobertas do marido após sua morte.

Em Bonitinha Mas Ordinária ou Otto Lara Resende o personagem Edgar é convidado a casar-se com aquela que dá o nome à peça, Maria Cecília, uma moça rica. Edgar era pobre, ex-contínuo, sustentava a mãe. Com o que ele sonhava? Ter um enterro de grã-fino.

Ele ama uma mulher pobre como ele, Ritinha. As circunstâncias levaram-na a prostituir-se. Ritinha revela isso numa cova no cemitério de São João Batista, a necrópole do Rio de Janeiro. O sexo e a morte – assim interligados – são temas rodrigueanos.

Tais obsessões de Nelson causaram espanto quando ele estreou suas peças: uma senhora disse certa vez que ele dormia em caixão de defunto. Outra, que era necrófilo.

Em sua autobiografia, A Menina Sem Estrela, o tema do desejo pela morte é recorrente. Ele diz: “Ainda hoje, não posso chegar numa janela alta. Basta olhar para baixo. E me vem o apelo doce, persuasivo, de morte. Pergunto: ‘E se me atirasse?’ Se me atirasse, começaria para mim o tempo dos mortos: eu seria um deles; e ficaríamos unidos, mortos e unidos, docemente mortos e irmãos.”

A coletividade dos mortos é um tema que foi explorado por Gilberto Freyre, amigo de Nelson. Em Assombrações do Recife Velho, Freyre fala sobre uma sociologia dos mortos. Diz ele: “Admite-se que possa haver associação por meios psíquicos, mesmo imaginários, de vivos com mortos”. E mais: “O convívio que certos vivos supõe manter tranquilamente com o espírito de pessoas mortas, conhecidas ou estranhas, ou com anjos, demônios, santos, pode ser estudado sociologicamente. Pois não deixa de ser uma forma de convivência”.

No clássico Casa Grande & Senzala, Gilberto Freyre escreve: “Abaixo dos santos e acima dos vivos ficavam, na hierarquia patriarcal, os mortos, governando e vigiando o mais possível a vida dos filhos, netos, bisnetos. Em muita casa-grande conservavam-se seus retratos no santuário, entre as imagens dos santos, com direito à mesma luz votiva de lamparina de azeite e às mesmas flores devotas. Também se conservavam às vezes as tranças das senhoras, os cachos dos meninos que morriam anjos. Um culto doméstico dos mortos que lembra o dos antigos gregos e romanos.”

O culto dos mortos é talvez uma das principais características dos católicos visto por não-católicos. Nas igrejas antigas eram enterrados os mortos, na sala das casas eram velados. Em muitas igrejas até hoje são expostos relíquias de santos, partes de corpos, ou corpos inteiros incorruptos e insepultos. Foi dessa estranheza causada pelo catolicismo que nasceu a Família Addams, inclusive.

Nelson Rodrigues e Gilberto Freyre, em suas respectivas obras, são herdeiros diretos da cultura brasileira, de origem católica, que remonta a tradições antiquíssimas dos gregos e romanos.

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  1. Eu, particularmente, não gosto de cemitérios. Acho que está diretamente ligado a essa forma de convivência com os mortos.

  2. O culto dos mortos é uma das principais características dos católicos visto por não-católicos? Mas o próprio trecho de Casa Grande e Senzala, citado no texto, diz que é uma característica dos gregos e romanos. Vejam esta reportagem sobre um povo da Indonésia que convive com os mortos dentro de casa: "'O Vovô está dormindo': O povo que vive com parentes mortos dentro de casa." (bbc.com/portuguese/international-39646627).

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