Caetano Veloso analisa pergunta do EnemReprodução/redes sociais

Do desbunde ao desencanto

Como a questão do Enem que deixou Caetano embatucado nos ajuda a entender o fracasso das utopias tecnológicas do último meio século
10.11.23

O Enem deixou Caetano Veloso confuso. No quarto, de pijama, ele foi instigado por sua mulher, Paula Lavigne, a responder à questão 23 do exame deste ano, na qual se pergunta o que teriam em comum duas canções que ele mesmo compôs – Alegria, Alegria, de 1967, e Anjos Tronchos, de 2022. Caetano ficou indeciso entre as alternativas B e D, embora, muito tipicamente, também tenha encontrando alguma verdade em A, C e E.

O estudante que errou a questão 23 deve encontrar consolo ao constatar que ela deixou Caetano embatucado. Se nem o compositor sabe a resposta, como exigi-la de um adolescente no Ensino Médio? Melhor invalidar a questão!

Lamento, jovem, mas não. Nem sempre o criador é quem está melhor aparelhado para interpretar a própria obra. A avaliação de Caetano sobre as canções citadas no Enem não diz nada sobre a qualidade da prova.

Acho, no entanto, que é mais interessante perguntar não o que as duas canções têm em comum, mas no que elas divergem. A resposta não caberia em uma prova de múltipla escolha: seria antes um tema para redação. Pois no contraste entre Alegria, Alegria e Anjos Tronchos há um registro sensível de certas mudanças que transcorreram nos 55 anos que separam as duas canções. Tentarei explicá-las tomando as cinco alternativas da questão 23 como roteiro. Fiz uma espécie de ranking, da resposta mais cabalmente errada àquela que considero a correta:

A – Referência às cores como elemento de crítica a hábitos contemporâneos.

Há elementos cromáticos nos trechos das duas letras transcritos na prova: “olhos cheios de cores” em Alegria, Alegria e “telas dos azuis mais do que azuis” em Anjos Tronchos. Configuram uma “crítica a hábitos contemporâneos”? Não.

C – Contraposição entre os vícios e virtudes da vida moderna.

“Eu tomo uma Coca Cola / Ela pensa em casamento.” O refrigerante é o vício e o matrimônio a virtude, ou será o contrário? Nenhum dos dois. O rapaz “sem lenço nem documento” de Alegria, Alegria não passa julgamento sobre a vida moderna na qual se lança com entusiasmo: “Eu vou. Por que não, por que não?”.

De outro lado, a canção do ano passado julga e condena os “anjos tronchos do Vale do Silício” e os “palhaços líderes” que surgem “no império e nos seus vastos quintais”. Ainda assim, não há contraposição simples entre vícios e virtudes. Em nosso novo mundo tecnológico, diz a letra, a ordem é “ser virtuoso no vício”. Haverá aqui um eco da mais famosa máxima de La Rochefoucauld – “A hipocrisia é o tributo que o vício paga a virtude”? Faria sentido: os linchamentos morais que se tornaram habituais nas redes são todos regidos pela hipocrisia.

E – Crítica à finalidade comercial das notícias.

Na canção de 1967, “o sol nas bancas de revista” enche o cantor de “alegria e preguiça”. Há um fascínio irresistível pela miríade de “fotos e nomes” – de Claudia Cardinale a “caras de presidentes” – que se encontram nas bancas ensolaradas (ou no jornal O Sol, que circulou por alguns meses em 1967? Parece que não: em texto publicado em 2007, Ruy Castro, que trabalhou em O Sol, avisa que Caetano provavelmente compôs Alegria, Alegria meses antes do lançamento do jornal). Não existe aqui crítica ao comercialismo da imprensa.

Já os anjos tronchos que dão título à música mais recente são caracterizados como poderosos e gananciosos – “anjos já mi ou bi ou trilionários”. Só que a banca de revistas não é a fonte das obscenas fortunas do Vale do Silício: Caetano canta sobre um mundo pós-imprensa, no qual não há mais propriamente notícia, somente informação.

D – Busca constante pela liberdade de expressão individual.

Caetano deu um passo em falso quando se uniu ao esforço corporativo dos medalhões da MPB para defender a censura a biografias não-autorizadas. Afora isso, ele tem sido um defensor da liberdade de expressão individual e, em particular, da liberdade artística: muitas de suas canções exaltam o compositor popular. Ocorre que essa tendência não é tão patente nos excertos de Alegria, Alegria e Anjos Tronchos que figuraram no Enem. A resposta correta só pode ser, portanto…

B – Percepção da profusão de informações gerada pela tecnologia.

O gabarito oficial do Enem só será divulgado depois da segunda fase da prova, que acontecerá neste domingo, 12. Mas dá para cravar com alguma segurança que esta é a alternativa correta. Cursinhos e escolas que divulgaram resoluções da prova deram a letra B como resposta da questão 23 (e Paula Lavigne apostou na mesma letra).

A alternativa está formulada de forma canhestra. A tecnologia gera a profusão de informações ou a percepção de que tal profusão existe? Em todo caso, o jovem malemolente de Alegria, Alegria passeia entre notícias sobre guerrilha, espaçonaves e Brigitte Bardot, enquanto o senhor angustiado de Anjos Tronchos sente seus neurônios acelerados em um “novo outro ritmo” marcado por um “denso algoritmo”. Ambos vivem em meio à profusão informativa.

O personagem de 1967 enumera notícias, fotos, cores, nomes com ironia jovial. Já o sujeito da canção de 2022  fala com alarme e indignação do “post vil” que pode matar. Se o anjo torto de Poema de Sete Faces condena apenas o poeta – Drummond – a “ser gauche na vida”, os anjos tronchos desgraçam nações inteiras: parecem estar de algum modo relacionados ao fracasso da Primavera Árabe e à ascensão do populismo de direita (os “líderes palhaços” de que fala a letra são obviamente Trump e Bolsonaro).

Expoente da Tropicália, Caetano abraçou o rock, o pop e o Chacrinha. Liberdade, cultura de massas e tecnologia – as guitarras elétricas de Alegria, Alegria, ousadas para a época – andavam juntas na festa tropicalista. O trajeto do desbunde de Alegria, Alegria ao desencanto de Anjos Tronchos contempla a ruína de outras tantas utopias tecnológicas, da aldeia global ao ciberespaço.

Nem por isso Caetano se tornou tecnofóbico. Anjos Tronchos se encerra em nota esperançosa, lembrando que hoje se pode produzir música no recesso do quarto, como fizeram Billie Eilish e seu irmão. Mas alguns versos antes, quando Caetano cita o bordão libertário de Alegria, Alegria –  “Eu vou. Por que não?” –, está claro que isso é só uma lembrança de “tempos em que havia tempos atrás”.

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
  1. As letras do Caetano, em geral, são muito difíceis de se cravar uma interpretação. Como mostra o artigo, será que são boa opção pra interpretação de texto, principalmente no Enem?

  2. É tudo tão universalmente individualizado que pode ser uma realidade superposta sobre algo virtualmente possível e etéreo de duração infinita. Acho que o autor responderia assim à questão.

Mais notícias
Assine agora
TOPO