Domínio PúblicoMalcolm McDowell em "Laranja Mecânica" (1971), o filme de Stanley Kubrick baseado no livro de Anthony Burgess

Fahrenheit 171

10.11.23

Leio no Estadão que o governo de Santa Catarina, esse baluarte do iluminismo, divulgou uma lista de livros que devem ser banidos das escolas do estado. O Index Prohibitorum Catharinensis inclui obras como It, o best-seller de Stephen King, e Laranja Mecânica, o clássico de Anthony Burgess. Nem vou me estender sobre o fato de que Burgess era um escritor católico e seu romance é basicamente uma fábula sobre o livre-arbítrio; noto apenas que os censores também colocaram na lista duas obras mais conhecidas nas versões para o cinema (Coração Satânico e Donnie Darko), o que me faz imaginar que eles viram os filmes e não passaram nem perto de folhear uma única página dos livros.

OK, vamos dar de barato que os livros foram lidos antes de ser vetados — ou, o que talvez seja otimismo delirante da minha parte, que os censores saibam ler. Séculos de burrice censória, incluindo o próprio Index Librorum Prohibitorum da Igreja Católica e o episódio da proibição a O Amante de Lady Chatterley, que vigorou por décadas no Reino Unido, não bastaram para mostrar que o que o governo catarinense está fazendo é propaganda dos livros banidos. Garotos que não tinham o MENOR interesse em Laranja Mecânica ou qualquer outra das obras da lista agora vão ficar curiosos para saber qualé a do livro, vão atrás do filme na internet etc. Enfim: o efeito será o exato oposto do esperado pelos zelosos educadores, que só querem proteger as crianças dos males do mundo.

Mas talvez seja uma forma mais sutil de burrice. Os deseducadores de Santa Catarina sabem que os alunos das escolas do estado vão dar um jeito de ter acesso aos livros proibidos; na verdade, o que querem é fazer embaixadinhas para o eleitorado bolsonarista dizendo “vejam bem, sabemos que tem essas indecências circulando por aí, mas nós não endossamos!”. Logo depois do primeiro dia de provas do Enem, o governador Jorginho Mello escreveu no X, o artista anteriormente conhecido como Prince — ops, a rede social anteriormente conhecida como Twitter—, que “agenda ideológica domina a pauta na educação federal” (claro, ideológicos são sempre os outros) e afirmou que em SC “estamos preservando nossos valores” (censura é mesmo um belo valor a ser preservado).

Como a burrice, além de ser ilimitada, é uma das coisas mais democráticas que existem, não custa lembrar que há um ímpeto censório muito característico de gente que se acha muito progressista. Já escrevi aqui sobre a mutilação dos livros de Roald Dahl e as tentativas de enquadrar as obras de Monteiro Lobato em razão das ideias racistas do escritor. Numa entrevista que deu à Folha no ano passado, Pedro Bandeira, um dos mais bem-sucedidos autores de literatura infantojuvenil no Brasil, comenta: “Parece que pedir censura é progressista hoje. É engraçado. As pessoas que se dizem progressistas ou liberais adoram censura”. Em seguida, ele cita um autor cancelável: “Vamos cancelar Platão, porque ele era a favor da escravidão. E por que não seria? Naquela época, não havia outra economia senão os impérios lucrando em cima do trabalho escravo. Só que Platão, depois de Aristóteles, é o berço do pensamento ocidental. E aí?”.

Pois é, e aí? Concluo fazendo um exercício de ver o copo meio cheio, à moda do Dr. Pangloss, o personagem de Voltaire: se os livros e a literatura são alvo dos ataques de gente burra por todos os lados, é sinal de que ainda preservam algo da sua força. E rezo para que a esculhambação — danação e salvação do Brasil — não nos leve a um cenário de Fahrenheit 451, o romance distópico de Ray Bradbury em que bombeiros queimam livros. Estamos mais para Fahrenheit 171.

***

A GOIABICE DA SEMANA

Vocês já devem ter lido aquela história de que Elvis Presley entrou incógnito em um concurso de sósias seus e acabou ficando em terceiro lugar. Certamente é apócrifa (um jeito chique de dizer “fake news”), porque já vi esse mesmo causo ser contado com outros personagens, como Charlie Chaplin. O Bananão, porém, nos presenteou com uma história real próxima disso: Caetano Veloso (foto) não conseguindo responder à questão do Enem sobre o que ele queria dizer em duas músicas que compôs, Alegria, Alegria e Anjos Tronchos (na verdade, ele conseguiu, mas marcou duas alternativas entre as cinco possíveis). Sugiro que os examinadores passem a incluir “ou não” como opção “e” em todos os testes.

 

Reprodução/redes sociais

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  1. O Caô, digo, o Caê vestido como Banana de Pijamas em plena luz do dia mostra que nossa “enteluquitualidade” só começa a pensar depois da mamadeira de pir, digo de toddy e depois de um charuto de mamonha. Mas respondendo a questão, A, B e C fazem todo sentido enquanto D e E são razoáveis. Aí que entra a grande pensadora contemporânea Dilma Bucéfala e sua máxima máxima: “ninguém vai acertar ou errar, vai todo mundo errar”. Alegria, alegria, Banana de Pijama… ou não.

  2. É óbvio que os políticos catarinenses estão interessados em holofotes para bolsomínions. Até aí tudo bem, mas é muita burrice achar que é possível proibir um livro na conjuntura atual. Com exceção dos países "dos Aiatolás" ou naquele cantinho perto da China, chamado de Coreia do Norte, não há quem segure a internet de se chegar a essa literatura.

  3. A burrice é democrática, abraça todos os credos, cores e classes sociais indistintamente. E censura boa é censura que não é comigo.

    1. Concordo plenamente. Mas sabe, o Ruy “Rogério Ortega” Goiaba é normalmente bum bananão para criticar a esquerda brasileira.

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