Foto: Mariana Garcia/Osesp

A timpanista

11.11.23 07:00

Elizabeth Del Grande (foto) ri quando é perguntada se está pronta para o concerto que a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp), a principal da América Latina, preparou especialmente para ela. “Anos de experiência não significam nada”, ela resume. E são, de fato, muitos: a homenagem, a ser executada em três concertos entre a última quinta (9) e hoje (11), tem como motivo os 50 anos da musicista no grupo, o que a torna uma das mais longevas intérpretes musicais brasileiras em atividade, de qualquer gênero.

(E, de longe, uma das menos conhecidas — já que ela é avessa ao uso de qualquer rede social e não possuía nem ao menos um artigo na Wikipédia até a publicação desta matéria.)

Beth, como se apresenta e é conhecida na Osesp, é a decana em toda a orquestra — e, de quebra, a servidora mais antiga da Casa. Nos quatro tradicionais naipes de uma orquestra (as cordas, as madeiras, os metais e as percussões), a “timpanista emérita” (seu cargo oficial) é a chefe do último.

Nas apresentações, seu foco é unicamente executar as peças no conjunto de (quase sempre) cinco grandes tambores, que produzem melodias distintas de acordo com sua afinação (acionada também  por um pedal) e com a baqueta escolhida. Sob sua responsabilidade, no entanto, recai a harmonia de outros tantos instrumentos como caixas claras, gongos, pratos, pandeiros, triângulos, tambores, marimbas, xilofones, glockenspiels e carrilhões.

Apesar do tamanho que ocupa fisicamente numa orquestra (talvez menor apenas que o piano), seu instrumento é usado apenas em momentos estratégicos, em obras clássicas mais recentes, principalmente no século XX. Sua presença tão destacada, no entanto, faz tímpano ter um brilho tão único que lhe rende apelido de “segundo regente”.

Até para quem não é iniciado na música clássica, é possível senti-lo: na abertura de “Assim Falou Zarathustra”, de Richard Strauss (famosa pelo filme “2001: Uma Odisseia no Espaço”), o instrumento dá a tônica junto aos metais de sopro. Em “O Fortuna” de Carl Orff, a peça clássica mais famosa e superutilizada em todo o século XX (e uma das favoritas de Beth, junto com “A Sagração da Primavera”, de Igor Stravinsky), as batidas do tímpano ajudam no sentimento apocalíptico de quase pânico. No Bolero de Maurice Ravel — que talvez esteja em segundo lugar nesta lista— a melodia só passa a ser e fato majestosa quando os grandes tambores entram em cena.

Mas, em todas estas peças (e na grande maioria das peças de música clássica), outros instrumentos são o destaque. Neste sábado, no entanto, é Beth quem vai à frente do palco, tocar uma peça pensada exclusivamente para seu instrumento e seu modo de tocar.

O autor da obra, Paulo Cesar Chagas, levou seis meses para compor “A Hora das Coisas”, que em suas palavras “expressa o tímpano de maneira variada, por ele ser um instrumento forte e de presença”. Um preso político na ditadura militar que virou professor de música em uma universidade na Califórnia, Paulo C. Chagas levou seis meses compondo a peça, baseada em um poema de Adélia Prado.

Beth é até certo ponto uma senhora franzina — ou que aparenta ser fisicamente franzina demais para um instrumento deste porte. Dúvidas como essas parecem pairar sobre ela desde o início do seu interesse com a música: seu pai precisou justificar por que estava comprando um kit de bateria para uma filha mulher, aos 10 anos. Quando ela ainda era adolescente, tocando como uma revelação na TV ao lado de Elis Regina e Toquinho (e com Chico Buarque e Milton Nascimento na plateia), ela mesma duvidava do futuro daquilo. Tanto que seu sonho era mesmo biologia ou química (ela acabou com um técnico em química industrial).

Mas as baquetas bateram mais forte e, em 1970, seu primeiro emprego com carteira assinada foi na Filarmônica de São Paulo; em 1973, sob a batuta de Eleazar de Carvalho, talvez o maior maestro brasileiro, conseguiu seu segundo (e atual) emprego.

Del Grande, durante ensaios no Theatro São Pedro. Foto: OsespFoto: OsespElizabeth, durante ensaio no Theatro São Pedro, na capital paulista
“Quando cheguei à Osesp, em meados dos anos 1980, Beth já era uma instituição dentro do grupo”, diz o trompetista Marcelo Lopes, hoje diretor-executivo da Osesp. Ambos tocaram juntos durante as vacas magras, quando quase nenhum interesse estatal e mesmo a falta de uma sede colocaram em risco a existência do grupo. “Nessa adversidade, Beth dobrou a aposta na profissão e fez a sua passagem da percussão para os tímpanos, instrumento sofisticado e de grande complexidade”. Após a morte de Eleazar, a promessa de reestruturação da Osesp foi cumprida e ambos tocaram juntos em julho de 1999 na inauguração da Sala São Paulo, ainda hoje uma das mais modernas salas de concerto do mundo, no centro da capital paulista.

“Eu assistia aos concertos da Orquestra Sinfônica Estadual na TV Cultura, quando estava começando a estudar o instrumento, e era aquela jovenzinha tocando aquele monte de instrumentos de percussão. Ela já era uma referência para uma aluna que estava começando na música”, conta Ana Valéria Poles, a primeira-contrabaixista da orquestra — e outra integrante emérita do grupo, nos quadros da casa há 42 anos. As duas viraram amigas pessoais e Valéria está na orquestra durante a execução da peça. “Ela sempre foi muito, mas o concerto que foi encomendado é muito desafiador. E você vibra junto com esse sucesso.”

A semana final de treinos envolveu, entre outros preparativos, ensaios diários com a orquestra; treinos especiais de fisioterapia para lidar com movimentos específicos que a peça pedirá da sua estrela; encontros com o maestro responsável pela condução (o britânico Neil Thomson) e o compositor (Paulo C. Chagas). Além, claro, das entrevistas onde ela diz “não ter a estrutura para ser artista”, sendo apenas “uma pessoa super comum, que rala para fazer o seu trabalho.”

Trabalho que, aliás, ela considera até certo ponto solitário e digno de muita concentração. Uma orquestra pode ter dezenas de violinos, e o desafino de uma única nota pode ser encoberto pelos outros instrumentos, entre milhares de notas. No caso do tímpano, uma nota tocada milésimos antes do momento certo é sentida como um trovão pela sala e, nas palavras da sua responsável, “mata o maestro, primeiro de susto”. E mata ela mesma, que diz ficar uma semana dormindo mal por remoer uma falha.

Mesmo assim ela pode monopolizar a cena — como ocorre em “Pinheiros de Roma”, uma obra italiana de 1924 que ela recentemente executou. O papel de pessoas como Beth é ficar imóvel quase toda a peça de 200 minutos, apenas para surgir, de forma enérgica e exuberante, no final.

“‘Pinheiros de Roma’ é isso: eu vou me envolvendo muito com a música”, ela diz. “Quando fizemos Romeu e Julieta [excertos da obra de Serguei Prokofiev, escolhidos pela regente Marin Alsop] aconteceu a mesma coisa. Aquele final …me dá um troço. Você pensa naquela tragédia toda, e a orquestra vem subindo e o tímpano tem de dar duas notas só. É uma coisa que vem de dentro.”

E é esse entrada na hora certa, de uma das peças mais discretas e potentes da orquestra, que será mais uma vez exigido de Beth, na peça para seu meio século de orquestra. O poema de Adélia Prado, que inspirou a peça, fala que “se deve esperar biblicamente/ pela hora das coisas”. Enfim, a hora do tímpano entrar é agora.

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  1. Desde o final anos 90, Teatro Municipal SP, Concertos para Juventude, já lá estava a menina Elizabeth, não sabia até hoje seu nome. A presença da Elizabeth, Artista Musicista, Carismática é garantia de bom espetáculo. Com gratidão, compartilhando o prazer pelo reconhecimento, PARABÉNS.

  2. O Fortuna é puro Heavy Metal. E a Sinfonia 2, de Mahler, não citada na matéria, tb tem vários trechos com forte presença de tímpanos. Parabéns à musicista!

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