Foto: Reprodução/AlerjDomingos Brazão: o “velho normal" da promiscuidade entre crime e política

O valor da justiça, o custo da injustiça e vice-versa 

A lei ainda está longe de imperar no país, mas o presidente da República e um ministro do STF parecem bem satisfeitos com a eficiência do judiciário  
04.04.24

Lula estava bem tranquilo com a demora na resolução dos homicídios de Marielle Franco e de seu motorista, Anderson Gomes. Foi o que ele disse em fevereiro, numa entrevista coletiva em Adis Abeba, capital da Etiópia: “Sabe quantos anos eu estou esperando o mandante do crime da Marielle? Seis. E não estou com pressa de dizer quem foi. Eu quero achar. Quando eu achar, vou dizer ‘foi Fulano de Tal’”.

Foi uma declaração espantosa por seu componente de megalomania. Reparem que o presidente da República quase tomou para si o papel de investigador, prometendo que daria o nome do mandante assim que o identificasse (“quando eu achar, vou dizer”). Pouco mais de um mês depois, coube à Polícia Federal apresentar ao país os prováveis arquitetos do assassinato de Marielle e Gomes. O relatório da investigação, esmiuçado por Wilson Lima na Crusoé da semana passada, aponta para os irmãos Domingos e Chiquinho Brazão, figurões da política carioca, e para o delegado Rivaldo Barbosa.

Foi também uma declaração indecente, pelo paralelo que traçou entre um duplo homicídio que a polícia brasileira até então não havia solucionado e o assassinato de um prisioneiro político cometido por uma ditadura. Pois o presidente viajante não havia sido questionado sobre o caso Marielle: ele respondeu a uma pergunta do repórter Américo Martins, da CNN, sobre a morte de Alexei Navalny, opositor de Putin, em uma presídio no Ártico. Lula pediu que se concedesse tempo para que os legistas russos apresentassem suas conclusões – como se fosse possível confiar nelas. O assassinato da vereadora carioca entrou na conversa para isentar um regime autocrático de responsabilidade sobre a vida dos dissidentes que encarcera.

Lula invocou as protelações do caso de Marielle para dar um verniz de normalidade aos crimes da ditadura de Putin. No entanto, o atraso das autoridades para chegar ao nome dos mandantes não teve nada que se deva considerar “normal”. O relatório da PF diz que o delegado Barbosa – alçado a chefe da Polícia Civil em 13 de março de 2018, um dia antes do crime – atuou na investigação para desviá-la do rumo certo (que, afinal, levaria a ele mesmo). O detalhe mais perverso da história é que ele se fez de amigo da família da vítima.

O caso confirma que a promiscuidade entre crime e política é o “velho normal” do Rio de Janeiro (ou do Brasil?). Multipartidário e trans-ideológico, essa patologia institucional teve um exemplo ostentoso na eleição de Domingos Brazão para o cargo de conselheiro do Tribunal de Contas do Estado (TCE), em  2015. Na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, 61 dos 70 deputados (quatro estavam ausentes da sessão) votaram nele. A única bancada que recusou Brazão foi a do Psol, partido de Marielle. O relator encarregado de examinar sua candidatura – e que lhe deu parecer favorável, claro – foi o petista André Ceciliano, hoje secretário de Assuntos Federativos do governo Lula. Tão certa era a vitória de Brazão, que o então deputado Waguinho (hoje prefeito de Belford Roxo e marido de Daniela do Waguinho, breve mas inesquecível ministra do Turismo) pendurou cartazes congratulando o futuro conselheiro já antes da votação. Domingos Brazão foi eleito para integrar um órgão que fiscaliza contas públicas apesar de estar respondendo a um processo por improbidade administrativa.

Domingos Brazão já era citado como provável mandante do crime desde 2019. Sua prisão agora é celebrada como uma vitória da Justiça. Ainda que o processo corra célere e todos os responsáveis pela morte da vereadora e do motorista sejam sentenciados e presos, resta saber se será feita uma limpeza profunda da política e da polícia do Rio de Janeiro.  

Por acaso, também chegou a termo neste ano o julgamento dos acusados de matar outra cidadã das periferias do Rio. O fato se deu há dez anos: Claudia Silva Ferreira, auxiliar de serviços gerais e mãe de quatro filhos, saía de sua casa para comprar pão, no Morro da Congonha, em Madureira, quando foi baleada no pescoço e nas costas. A perícia constatou que os tiros foram disparados da posição naquele momento ocupada por dois policiais militares que conduziam uma operação na favela. Em julgamento no mês passado, eles foram absolvidos. O juiz considerou que eles apenas falharam na mira durante uma troca de tiros com um traficante. “Os acusados agiram em legítima defesa para repelir a injusta agressão provocada pelos criminosos, incorrendo em erro na execução, atingindo pessoa diversa da pretendida”, diz um trecho da sentença reproduzida em O Globo.

Já desde o século passado, o Rio de Janeiro é infestado por entidades sobrenaturais conhecidas como “balas”, que percorrem os ares, perdidas, até encontrarem abrigo no corpo dos passantes imprudentes. Só que esta história não acaba com as balas chegando às costas da auxiliar de serviços gerais: no esforço de corrigir um engano honesto, os policiais jogaram a vítima no porta-malas da viatura, para levá-la a um hospital, ao que parece. O compartimento abriu-se no caminho, e Claudia foi arrastada por 350 metros, pendurada ao carro pela roupa. Pedestres e outros motoristas alertaram os policiais que uma “pessoa diversa da pretendida” estava sendo esfolada no asfalto. Eles não pararam.

O Globo informa ainda que um dos policiais envolvidos chegou a ser preso em 2020, por associação com milícias. Não me surpreende.

Cerca de um mês antes da absolvição, o ministro Luís Roberto Barroso publicava um artigo na Folha de S. Paulo exaltando a eficiência e a produtividade do Judiciário brasileiro. Encerrava o texto com esta frase de efeito: “O custo da Justiça pode parecer alto, mas o da falta de justiça é bem maior”. Conrado Hübner Mendes, também na Folha, demoliu a argumentação do humanista do STF, demonstrando que ela se amparava na equiparação enganosa entre o valor da justiça, que é imaterial, e os valores do orçamento da magistratura, que são quantificáveis – e, no Brasil, exorbitantes.

É o caso de perguntar o quanto nos custa a injustiça.

 

Jerônimo Teixeira é jornalista e escritor.

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  1. Se pudéssemos ter um avatar da podridão que é a política no Brasil Domingos Brazão seria perfeito.

  2. Esse juiz luis roberto barroso.tal qual alexandre e gilmar anda aprontando, para minha surpresa , O tinha em outra conta,Que vergonha... deveria ter arrependido do perdeu mané, Respeite o povo que paga seu salário Parecem um bando não sei se estão trazendo ou se estão levando.

  3. O STF de Barroso tem muita participação no problema. O tribunal nos últimos tempos tem sido uma fonte de insegurança jurídica devido ao seu ativismo judicial.

  4. Uma perguntinha pro Lula, Zé Dirceu e Gilberto Carvalho: Quem matou Celso Daniel e 7 testemunhas. E outra: quem matou Toninho do PT?

  5. Em RJ o judiciário e ministério público são um lixo equivalente à polícia civil. STF e STJ também ajudam muito na impunidade dos criminosos neste estado.

  6. O nível moral do judiciário e ministério público do RJ e equivalente ao da polícia, civil e militar, que é equivalente ao dos políticos do legislativo e executivo, e aos dos ministros do TCE. Ainda tem o agravante do STF e STJ ajudarem os bandidos graúdos do estado. RJ é tão bagunçado que já teve eleição anulada e intervenção federal na segurança pública. 60% da capital é controlada pelos milicianos.

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