O muito difícil e o muito fácil
“Se você quer mudar alguma coisa na música, precisa aprender a lutar”, dizia Astor Piazzolla. Quando o compositor lançou suas músicas, que mudaram o tango, acrescentando a ele elementos do jazz e da música contemporânea, como a guitarra, enfrentou uma imensa oposição em seu país, a Argentina. Os defensores e intérpretes do tango tradicional ligaram para a sua casa, ofenderam a ele e sua família e o ameaçaram de morte.
Piazzolla lutou e venceu. Sua música é conhecida e tocada no mundo inteiro, não só em casas de shows, mas cada vez mais em salas de concerto — já o compararam a Antonio Vivaldi, devido à popularidade crescente de suas peças, incluindo suas Quatro Estações Portenhas — paralelas à de Vivaldi pela temática.
Não deixa de ser curioso que a mais abstrata das artes — a música — precise ser defendida com os punhos, por assim dizer. Mas é assim: por vezes é preciso lutar pela arte, que é eminentemente composta de bens simbólicos — o que parece um paradoxo.
É que os bens simbólicos são feitos de uma forma em detrimento de outra. Formam uma tradição e acumulam modos de fazer.
O próprio Piazzolla é assim, evidentemente: sua música incorpora a tradição do tango — para se ter uma ideia, ele aparece tocando bandoneon quando criança num filme com Carlos Gardel. O tango existe desde o século 19, Brahms compôs um tango e o colocou na sua quarta sinfonia, terminada em 1885.
Ele incorpora também a melhor tradição da música clássica, pois foi aluno de composição de Nadia Boulanger. Nadia foi professora de toda uma geração de compositores — Aaron Copland, Almeida Prado — e é a chave da formação de Piazzolla. Foi ela que o estimulou a fazer música buscando as raízes do tango. Ao mesmo tempo, o ensinou o instrumental da música clássica, fuga, contraponto etc.
Nesse sentido, Piazzolla é um compositor privilegiado: incorpora realidades distintas como tango, música de câmara e música sinfônica, a até jazz. No final da contas, virou um caldo bem original.
Inclusive porque a música contemporânea padece de um problema grave que é o seguinte: a música sinfônica cresceu demais em volume sonoro e na variedade de instrumentos. Gustav Mahler — com sua Sinfonia dos Mil, que exige três orquestras, dois coros — levou ao extremo o que a orquestra pode crescer. Com o dodecafonismo — um novo sistema de alturas musicais criado por Arnold Schoenberg — a música foi ficando muito difícil de ouvir, porque ficou muito complexa. E evidentemente que os compositores não vão se contentar em escrever apenas nas formações orquestrais do passado. Enquanto isso, a música popular ficou simplória demais — as músicas produzidas hoje em dia pelas divas pop, por exemplo, são feitas em série e são todas iguais.
Nesse contexto, surge Piazzolla, com seu bandoneon e um lirismo exacerbado, sensual, que usa do tango tradicional e vai muito além. De certa forma, Piazzola resolveu um problema contemporâneo, equilibrando o muito difícil e o muito fácil, o popular e o erudito. Não é à toa que ele é tão popular nas salas de concerto. Diferentemente dos compositores contemporâneos, a música de Piazzolla conseguiu uma fusão do popular com o virtuosístico que só Vivaldi, o padre ruivo, fez alguns séculos antes.
Josias Teófilo é jornalista, escritor e cineasta.
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Que bela comparação entre Piazzolla e Brahms. Conheço um pouco de suas obras, mas são ricas demais. E, ultimamente tenho me perguntado o que acontecerá após essa música que vemos hoje? Como Teófilo coloca, são iguais. Difícil mostrar uma que se destaque, que tenha qualidade estética para aproximar gerações.
Bravo. Brevíssimo