Desfile militar: os perpetradores de 64 já se retiraram - Foto: Joédson Alves/Agência Brasil

Meu ato inicial de rebeldia contra a “revolução”

Os perpetradores de 1964 já se retiraram, mas todo 31 de março algum jovem vai às redes dizer “vigiai, que senão tudo pode acontecer de novo”
04.04.24

Domingo passado foi o sexagésimo aniversário daquela “revolução” que meus professores de ginásio, ensinando a nós, alunos, de forma prática, a ironia nos seus usos semânticos, nas expressões faciais e nos tons de voz adequados, chamavam “A redentora”. Isso foi entre 1978 e 1981, ou seja, depois que o general Sílvio Frota foi posto para correr e a abertura posta para andar pela dupla Geisel/Golbery. Eu disse “ironia”, mas, se a memória, essa empoderada, não me trai, houve entre os docentes nesses anos uma progressão, didática e anímica, da ironia à ferocidade: em 1981, uma professora de geografia jovem, maconheira e democrática, do tipo que usava calça boca-de-sino e camisa de botão e se sentava em cima da mesa, já usava abertamente de palavrões para se referir ao Figueiredo, ao Delfim Netto, ao Maluf, enfim, à companhia bela toda. Palavrões que nos deliciavam, menos por quem atacavam e mais por serem meros palavrões – e partirem de boca de mulher.

A luta, entretanto, vinha de muito antes e envolvia muita gente. Meu ato inicial de rebeldia contra a “revolução” e a consequente ditadura militar, por exemplo, foi jogar um chocalho em algum sargento, lá pelo fim de 1967 ou começo de 1968, quando eu orçava pela idade de um ano. Cada um faz o que pode, é o que dizem o ditado e a prudência acanhada do povo, e o que eu podia fazer era isso; no máximo, podia talvez vomitar no sapato de algum tenente. Mas as relações sociais da minha família, proletária vocacionada, não ascendiam a mais que sargento, fosse do Exército, fosse da então chamada Força Pública – daí a minha luta ter que ser travada contra as patentes mais baixas.

Pensando bem, talvez houvesse tenente no raio de ação dos gorfos de uns primos meus: um tio chegou a ser pequeno industrial. Não digo nada se essa condição não o abeirasse até do coronelato. Mas meu pai esteve sempre mais para Meneghetti do que para Crespi, e o próprio Meneghetti, quando se fez arrivista, só ascendeu socialmente do nível do “sêo guarda” para o do “sêo Delegado” quando ganhou nome, nome que meu pai nunca teve – até porque nunca foi ladrão. Sargento, portanto, e olhe lá.

Mas não se tire das circunstâncias – a curta idade e os consequentes curtos meios, a inferioridade das patentes – que o meu gesto fosse menos renhido ou menos sincero. Reivindico meu quinhão de lutador. “Não passarão!”, balbuciava eu em língua de bebê enquanto, bom, enquanto eles passavam, e seguiram passando até eu completar dezessete anos, em 1984, e Tancredo ser eleito logo em seguida.

Dezessete anos, dezessete primaveras. Do botão à flor da idade. E da flor à murchidão: um outro lote de circunstâncias favoráveis permitirá que qualquer dia destes eu complete cinquenta e sete outonos, os últimos quarenta dos quais respirando, engolindo, me embriagando do ar da liberdade e me bronzeando ao seu sol. Porque eles, os perpetradores de 1964, não somente se retiraram como passaram esses mesmos quarenta anos quase sem fazer outra coisa a não ser se retirar. Foram saindo, foram saindo, e continuam a sair. De todo lugar, de tudo. E nada disso impede, entretanto, que todo dia 31 de março algum jovem de vinte e cinco anos venha a alguma rede social dizer “vigiai, vigiai, que senão tudo aquilo pode acontecer de novo”.

Acalma-te, ó jovem de vinte e cinco anos das redes sociais. Quarenta anos de retiradas à parte, nota que os últimos dias de 2022 mais o dia 8 de janeiro de 2023 devem ter provado, além de qualquer dúvida razoável, que se os perpetradores de sessenta anos atrás continuam a perpetrar, desta vez, pelo menos, perpetraram pro teu lado, perpetraram a teu favor e a favor das tuas ideias. Rejubila, ó jovem de vinte e cinco anos das redes sociais: tu negas, tu negaceias, mas o mundo é teu. Se não o mundo, ao menos o Brasil, teu quinhão.

Se precisas que te digam mais, se queres mais camomila para as tuas palpitações, lembra-te do que disse um ministro outrora filiado ao Partido Comunista do Brasil, ministro não obstante dotado de graça e donaire ímpares que fazem dele um dos personagens mais carismáticos do Brasil de hoje e a quem, tenho certeza, idolatras: os perpetradores de ontem são hoje subalternos, e nem sequer consistem exatamente num “poder”. Basta? Chega?

Olha que no meu tempo, aquele do sargento e do chocalho, ou o do tenente e do vômito, ministro nenhum diria coisa assim, fosse em público, fosse no banheiro. Acalma-te e vê, ó jovem de vinte e cinco anos das redes sociais, o quão falta de meios era, desde o berço, a minha geração! Vê quão molhado era o nosso rojão! Vê, compara com os meios da tua e rejubila outra vez, tu que tens o ministro, tens os perpetradores, tens os tempos (e seus espíritos) e os costumes, e até o chocalho agora é teu. É esse o bastão que eu te passo. Chacoalha.

 

Orlando Tosetto Júnior é escritor.

As opiniões emitidas pelos colunistas não necessariamente refletem as opiniões de O Antagonista e Crusoé

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
  1. Excelente. A memória de 64 não é usada como celebração do que ganhamos com a democracia, mas um agitar de espantalhos para ganho eleitoral. Escusado e estúpido, como habitual por aqui

  2. Sua crônica me fez lembrar de minha infância nos colégios públicos. Eram tempos de Grupo Escolar. Tinha que cantar o Hino toda semana, aprender "Moral e Cívica" e desfilar em Sete de Setembro. Mal sabia eu o que aquilo representava na vida política. Passadas as décadas, eu no "Cursinho" saindo em passeata pró-Lula... Ainda bem que me curei de ambas lavagens cerebrais.

  3. Lá pelos meus oito anos, eu maltratava meus soldados de borracha verde. Alguns deles, furei com agulhas, meus bastões para a posteridade. Depois, sempre na resistência, nunca aprendi o Hino da Bandeira e nem mesmo o Hino Nacional completo, mesmo depois de 51 primaveras.

  4. O grande erro dos militares foi fazer o serviço mal feito que hoje está muito claro ... duro, cruel mas esta é a infeliz verdade basta ver no que nos tornamos sob ditadura humilhante que viola como quer as leis inúteis deste país galinheiro onde três pôdres poderes acolitados escravizam o país dos manés ... e O PIOR ainda está por vir !!!

Mais notícias
Assine agora
TOPO