Foto: Wikimedia CommonsRoald Dahl, que morreu em 1990; o escritor britânico teve vários de seus livros para crianças adaptados para o cinema

A fantástica fábrica de censurados

24.02.23

Roald Dahl (1916-1990) é um dos mais famosos e populares escritores de histórias infantis do Reino Unido — aqui no Brasil, ele talvez seja mais conhecido pelas adaptações de suas obras para o cinema, como A Fantástica Fábrica de Chocolate e James e o Pêssego Gigante. Dahl acaba de se tornar mais uma das vítimas da censura do bem, aquela que mutila livros porque só quer proteger as crianças (e alguns supostos adultos) das coisas feias do mundo.

Resumindo o caso, a Puffin Books — que publica os livros de Dahl e é subsidiária da Penguin Random House, uma das maiores editoras do mundo — anunciou que tinha submetido a obra do escritor a uma revisão de “sensibilidade”, com mudança ou supressão de trechos que pudessem ser considerados ofensivos. A alegação era que Dahl escrevera os livros muito tempo atrás e eles precisavam de atualização. O jornal The Telegraph deu-se ao trabalho de contar e acabou descobrindo centenas de mudanças nas histórias. Agora, no mundo de Dahl, não existem mais “gordos” nem “feios”, os homens-nuvem de James e o Pêssego Gigante viraram pessoas-nuvem, os filhos do Sr. Raposo em O Fantástico Sr. Raposo passaram a ser filhas e uma menção a “tratores pretos” nesse livro foi cortada (não é piada; quem dera fosse). Em Matilda, sumiu a citação a Rudyard Kipling, aquele odioso colonialista britânico, e Jane Austen entrou no seu lugar.

Esses poucos exemplos bastam para mostrar que a palavra “mutilação” não é um exagero no caso — e, vejam, tudo isso aconteceu com a anuência da companhia que lida com os direitos das obras de Dahl desde sua morte. Neste ponto, leitores brasileiros devem se lembrar das polêmicas envolvendo passagens racistas nas obras de Monteiro Lobato, ainda hoje nosso maior escritor para crianças. A pessoa física de Dahl também não era flor que se cheirasse, a começar pelo antissemitismo. Salman Rushdie, que entende duas ou três coisas sobre censura e foi esfaqueado recentemente por causa daquilo que escreveu, destacou isso ao tratar do caso no Twitter: Dahl não era “nenhum santo”, mas a censura é absurda, e tanto a editora quanto o espólio deveriam se envergonhar.

(Alguém na rede social criticou Rushdie pela parte do “nenhum santo” e afirmou que ele estava querendo pagar pedágio à esquerda censora. O autor de Os Versos Satânicos respondeu ironicamente: “Ele [Dahl] era um antissemita confesso, com fortes inclinações racistas, e se juntou ao ataque contra mim em 1989 [ano da fatwa decretada pelo aiatolá Khomeini]. Mas obrigado por me repreender por defender seu trabalho da execrável Polícia da Sensibilidade”. Ou seja: se Salman Rushdie, que tem ótimas razões para odiar Dahl, consegue argumentar que a obra dele não deve ser desfigurada, você também pode.)

Especialistas mais habilitados a falar sobre literatura infantil do que eu, como o colunista da Folha Bruno Molinero, apontam que o ataque a Dahl é uma das consequências de a literatura infantojuvenil não ser encarada como arte, e sim como uma espécie de arma pedagógica para que as crianças aprendam bons hábitos e se tornem bons cidadãos. Falei disso quando escrevi aqui sobre o saudoso João Carlos Marinho, cujo livro mais conhecido, O Gênio do Crime, foi uma das minhas portas de entrada na literatura adulta — inclusive por seu glorioso desinteresse em dar lições de moral. Hoje, a obra de Marinho seria impublicável: não consigo imaginar o “gordo” Bolachão, detetive-mirim de 12 anos, tentando se passar por uma criança “perfeitamente meningética” de 8 anos para elucidar um caso. Fariam uma bela fogueira para imolar o livro e o autor.

O problema, acrescento eu, é que obras adultas também estão na mira da Polícia da Sensibilidade, muito empenhada em tratar todos os leitores como crianças que precisam ser protegidas de expressões ofensivas. Há várias maneiras de lidar com passagens problemáticas na literatura, seja ela infantil ou adulta: contextualizar, explicar por que o trecho é problemático, ressaltar as diferenças entre a época em que o livro foi escrito e a nossa. Mas o espírito autoritário que anima a pior esquerda e a pior direita prefere proibir ou reescrever o passado. A velha censura, como a que proibiu O Amante de Lady Chatterley, de D.H. Lawrence, por mais de 30 anos no Reino Unido acabava servindo de propaganda para as obras; a nova se pretende moderninha e inclusiva, mas é basicamente uma versão 2.0 de Josef Stálin apagando seus inimigos políticos de fotos antigas.

Espero que a literatura e as outras artes sobrevivam à fantástica fábrica de censurados. Mas não boto muita fé nisso: temo que os escritores das próximas gerações já venham com o chip da autocensura e mais preocupados em serem reconhecidos como gente boazinha, “mudar o mundo” com suas obras, aquelas coisas. O mundo continuará sendo a porcaria que é, mas a arte estará cheia de bons sentimentos  — aqueles que, como dizia André Gide, fazem a má literatura.

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A GOIABICE DA SEMANA

O destaque desta vez vai para a pluralidade do grupo de trabalho que o governo Lula criou para “combater o discurso de ódio”, que será presidido pela ex-deputada Manuela D’Ávila e terá a participação de representantes da sociedade civil. Esses representantes — ou pelo menos os nomes que foram divulgados até agora — cobrem muito bem o espectro que vai da centro-esquerda até a esquerda muito esquerdistaça pra valer mesmo. Compreensível: se o discurso é de ódio, quem é de esquerda só pode ser vítima, jamais propagador. É um espectro político que se compõe exclusivamente de ursinhos carinhosos.

Reprodução/Redes SociaisReprodução/Redes SociaisManuela D’Ávila, que vai comandar o grupo de trabalho sobre “discurso de ódio”

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  1. Desta vez a coluna não foi também para rir, foi "só" muito importante mesmo (no meio do caminho até me esqueci que estava lendo a sua, R.G.). Desfigurar uma obra já é insuportável e ainda fazer isto numa obra que é para adultos?! Imperdoável!

  2. Os jornalistas são os maiores propagadores das mudanças feitas pela Polícia da Sensibilidade. Acabei de ler a nota do Anta "Covid: Brasil Começa a Aplicar Vacinas Bivalentes". Nela a jornalista do Anta escreve, ecoando a linguagem burocrático-eufemística: "Instituição de Longa Permanência", em vez de asilo; "população privada de liberdade" em vez de preso e "sistema de privação de liberdade" em vez de prisão.

  3. Pois é Ruy, não sei até que ponto essa censura resolverá alguma coisa. Pelo que tenho visto está cada vez pior. A fragilidade das crianças em aceitar a realidade que se impõe vai desaguar em problemas muito maiores. Em compensação, o mercado de trabalho para psicopedagogos e psiquiatras está bombando.

  4. As obras não carecem de censura. Já o sujeito que, tão sensível, ofende-se com qualquer expressão ou passagem de uma obra literária não merece o privilégio de lê-la. Quanto à goiabice, a ideia de que a violência e a mentira como armas políticas são exclusivas da direita é algo propagado pela imprensa festiva há muito já. Não é novidade esse GT nesse governo de m3rda.

  5. Em 2023 começamos a viver o que George Orwell escreveu (ou profetizou) no livro "1984", com direito à reescrita dos livros e da história, e, como bônus, o fofo Ministério do Amor. Que Deus tenha piedade de nós.

  6. Aqui nos US as pessoas estão ficando cansadas dos tais woke, graças a Deus. E eu compro todos os livros que eu amo em papel e capa dura, que é para não vir nenhum ta.rado da censura meter a caneta onde não é chamado. Só leio no kindle os kind of bosta ones, como a biografia do insaciável Marlon Brando. MS

    1. Agradeço a notícia sobre os US, já que aqui sempre se segue o que vem de fora. Estou ansiosa pra essa coisa chata sair de moda e outra geração trazer outra novidade - tomara que boa…

  7. Na melhor das hipóteses, parte-se do princípio que o leitor é um incapaz que não sabe distinguir, contextualizar e interpretar fatos. Na pior das hipóteses, é censura e lavagem cerebral mesmo. Se as obras do Lobato apresentam aspectos racistas, que se use isto para expor a polêmica, não para enterrar o debate. A Alemanha superou o nazismo expondo suas cicatrizes para o mundo e não cobrindo elas. Tanto é que ele ressurgiu com força em países como Rússia, Ucrânia e Polônia, suas antigas vítimas.

  8. Hitler doutrinou suas criancas e Putin está fazendo o mesmo com criancas ucranianas. "Meninos do Brasil" (filme) vai se tornar realidade.

  9. Obrigada Sr. Goiaba por dizer aquilo que hoje é impossível ser dito. Me sinto policiada diuturnamente. O bom humor do nosso povo vai sendo substituído pela autocensura. Temos que cuidar com as expressões, os ditados populares e até com o que lemos. Queimaremos livros, um dia, como estamos cancelando e apagando autores que não são adequados para os nossos censores.

  10. Graças a Deus que existem articulistas/jornalistas como vc. É um bálsamo poder ler críticas aos monopolista da virtude. Aliás, toda vez que me deparo com essa turma já me faço a pergunta: quanto isso irá me cu$tar? Parabéns pela combatividade.

  11. Quando minha sogra faleceu há dois anos, meu marido foi limpar o apartamento para vender. No antigo quarto dele haviam ficado apenas as quatro coisas que marcaram a infância dele: a coleção de carrinhos, de camisas de futebol, de revistas quatro rodas e um único livro: O Gênio do Crime. Os carrinhos, as camisas e as revistas ele doou. O livro ficou.

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