ReproduçãoKramatorsk, cidade atingida por mísseis russos

Um aniversário sem comemorações

A prática de privatização da guerra, com o uso de mercenários como os do grupo Wagner, dificulta a penalização de eventuais abusos por parte dos agentes militares contratados
24.02.23

O mundo encontra-se em tensão desde fevereiro de 2022, quando o presidente russo, Vladmir Putin, autorizou uma operação militar contra a Ucrânia. A história dos dois países é marcada por diversos pontos de convergência social, econômica e cultural. Russos e ucranianos estiveram juntos durante todo o período da Guerra Fria quando formavam o bloco soviético, que encerrou as suas atividades nos anos 1990.

Mais recentemente, os ânimos entre os dois países foram modificados por ações relativas à geopolítica da região. Os ucranianos passaram a se relacionar de forma mais próxima com as potências militares e econômicas do Ocidente,  causando desconfiança e insegurança aos russos. A demanda ucraniana para fazer parte do Tratado do Atlântico Norte (Otan) foi o estopim para que Moscou utilizasse a força contra o país.

Em 2014, quando o presidente Barack Obama governava os Estados Unidos, a Rússia apresentou uma primeira manifestação violenta: invadiu uma porção territorial da península da Crimeia, importante em razão do seu acesso ao Mar Negro e ao Mar de Azov. A comunidade internacional se posicionou de forma contrária a essa ação, mas manteve os seus princípios de não intervenção em questões locais.

A aproximação entre a Casa Branca e o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky chamou, todavia, a atenção do Kremlin, que passou a agir de forma agressiva contra o país vizinho. A expansão da Otan é um assunto sensível aos russos, que observam nessa iniciativa uma ameaça à liderança regional do país. Com base nas diretrizes da política externa russa, não há motivos para que os países da região estabeleçam contatos próximos com uma aliança militar liderada pelos americanos.

Desde o fim da União Soviética, os russos buscam exercer um papel de maior influência no mundo e a ascensão de Putin ao governo do país trouxe de forma mais vívida a pretensão russa de ser uma potência regional. Influenciar os países que a rodeiam, incluindo a Ucrânia, é um objetivo central para a diplomacia russa.

Nos últimos doze meses, os confrontos entre os dois países foram muito duros. Entre conquistas e perdas de cidades e regiões, milhares de pessoas precisaram sair de seu país em busca da sobrevivência em outras regiões do mundo. Milhares de mortos e feridos e investimentos volumosos já foram empregados no conflito em questão.

No último dia 20, o presidente americano Joe Biden fez uma visita surpresa à capital Kiev. Em um discurso forte e incisivo, Biden fez questão de defender a liberdade ucraniana e afirmou que os russos não vencerão a guerra. A ação militar começou pela tomada de Donbas, onde se concentravam províncias separatistas que contestavam o poder do governo ucraniano sobre suas decisões referentes àquelas localidades.

Diversas sanções internacionais foram aplicadas aos russos. Investimentos foram suspensos, empresas deixaram o país, países passaram a evitar o contato comercial com  Rússia em razão de sua atitude belicosa, condenada por princípios do Direito Internacional. Um número considerável de países utilizou-se do sistema representativo da ONU para se posicionar de forma contrária ao conflito. Nada disso foi suficiente para estancar o rastro de destruição que acometeu aquela região.

Inicialmente, esperava-se que o conflito não seria duradouro. A diferença entre o poder militar da Rússia e da Ucrânia poderiam gerar um ataque concentrado com garantia de sucesso das Forças Armadas russas. O que não se esperava é que diversas nações ocidentais se posicionariam como patrocinadores da defesa ucraniana com a cessão de recursos financeiros, armas e apoio logístico. Os ataques que durariam dias já completam o primeiro ano sem grandes possibilidades de serem finalizados nos próximos meses.

A Rússia é um player importante no tabuleiro internacional. Além de ostentar capacidades consideráveis do ponto de vista bélico, sendo, inclusive, um dos países com maior capacidade nuclear do mundo, a Rússia é a décima primeira economia mundial, segundo informações do Fundo Monetário Internacional (FMI).

Produtos sensíveis na cadeia produtiva global são oriundos da região em conflito. Petróleo, gás natural e grãos tiverem os seus preços elevados em razão da dificuldade da Rússia e da Ucrânia em realizar o seu escoamento. Organizações Internacionais como a FAO (agência da ONU que lida com temas relacionados à agricultura e à alimentação) já temem um desabastecimento crítico em alguns países que dependem desta produção.

O gás russo atende amplamente ao mercado europeu e o petróleo do país atende a uma gama considerável de países que encontram dificuldades na substituição imediata de sua matriz energética e, portanto, têm sofrido com os desdobramentos da guerra.

Chama a atenção da comunidade internacional a utilização de Exércitos não regulares nos ataques à Ucrânia. Na dificuldade de mobilizar suas forças convencionais, a estrutura militar russa tem sido ampliada pela contratação de soldados e de serviços de guerra principalmente oferecidos pelo grupo Wagner. A prática de privatização da guerra não é nova na história mundial mas preocupa o sistema de Estados em razão da dificuldade encontrada pela legislação internacional vigente em penalizar eventuais abusos por parte dos agentes militares contratados. Experiências que feriram os direitos humanos já foram vistos anteriormente nas guerras do Afeganistão e do Iraque e colocam em xeque a capacidade das instituições na promoção da paz e da estabilidade de segurança e sobretudo a centralidade do Estado como ator nas guerras.

O Conselho de Segurança da ONU tem enfrentado dificuldades em cumprir o seu papel institucional. A Rússia é um dos países com assento permanente e com direito de veto das resoluções propostas pela Organização. Um recuo russo neste momento colocaria em evidência a sua debilidade estratégica. Um recuo por parte dos ucranianos deixaria brechas para ataques futuros e movimentos  expansionistas por parte de outros países do mundo, inclusive a China, que apoia, ainda que de forma não declarada, as operações russas sobre o território ucraniano.

O presidente Biden será conhecido por ser o presidente que tirou as últimas tropas americanas do Afeganistão assumiu um posicionamento titubeante em diversas questões centrais da política internacional. A Europa se posiciona em favor da rápida distensão do conflito, mas ainda não há um cenário de solução dessa situação. O conflito tende a escalar e os próximos meses serão cruciais para a dinâmica de poder global.

 

Christopher Mendonça é professor de relações internacionais no Ibmec-BH e doutor em Ciência Política pela UFMG

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    1. Discordo. Há um claro viés russo. Praticamente ignora o conflito no Donbass patrocinado pela Rússia. Não menciona os eventos de 2004 e 2014 (Maidan) antes da invasão da Criméia. O protagonismo ucraniano quase inexiste para o analista.

  1. Mesmo diante desta barbárie a OTAN não atacou a Rússia. Por quê atacaria sem nenhum motivo, como alegam os russos?! …

  2. A tese de expansionismo da OTAN é falha, historicamente o expansionismo russo é bem evidente com a invasão da Georgia em 2008 que apenas queria ser independente da Rússia. O Plano Cachaçada da Paz do Itamaraty trouxe sanções a acordo Mercosul - União Europeia e fornecimento de material eletrônico aos carros de combate Panzers I e Guarani, também para Embraer.

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