Foto: Tauan Alencar/Câmara dos deputadosLula ao tomar posse: ele quer planejar investimentos (inclusive os privados)

Como analisar o governo Lula: passo 1

A ideia de uma gestão popular, da base para o topo, só acontece dentro de uma dinâmica que é liderada e coordenada pelo Estado
24.02.23

Este é o primeiro de três textos que objetivam organizar um marco analítico do governo Lula e que serão publicados semanalmente. Com isso, espero ser possível edificar um ponto a partir do qual será possível avaliar este novo ciclo político numa perspectiva racional e preocupada com os seus efeitos sobre as principais instituições que influenciam o desempenho da economia e da democracia no país.

Antes, porém, é preciso definir o que se entende por instituições. Trata-se das regras do “jogo grande”, isto é, dos mecanismos que dão incentivos positivos ou negativos para que atores escolham um ou outro caminho. Por exemplo, o quórum qualificado para a aprovação de uma PEC é uma regra que obriga o governo a construir amplas maiorias se quiser ter capacidade de fazer reformas estruturantes, criando necessidades políticas enormes para o governo de plantão e determinando sua forma de atuação. É somente a partir do seu entendimento que é possível prever como o enredo da política irá se desenrolar.

O primeiro ponto para entender o governo Lula é sua perspectiva ideológica. A pista mais importante foi dada pelo próprio presidente no seu discurso de posse no Congresso Nacional. Para deputados e senadores, Lula afirmou que, naquele dia, assinava “medidas para reorganizar as estruturas do Poder Executivo, para que voltem a permitir o funcionamento do governo (…). Resgatar o papel das secretarias, bancos públicos e empresas estatais no desenvolvimento do país. Planejar os investimentos públicos e privados na direção do crescimento econômico ambiental e socialmente sustentável.”

É importante guardar esta informação: “planejar os investimentos públicos e privados”.

A ministra da Gestão e da Inovação Esther Dweck, ainda quando comandava o grupo de transição, afirmou que o PT encontrou um cenário de “terra arrasada” quando analisou os números do governo anterior. É claro que a crítica faz parte da narrativa eleitoral, algo natural quando se trata de uma substituição feita entre forças políticas antagônicas. Entretanto, há algo revelado na declaração sobre como a nova gestão vê seu papel e a dinâmica política.

Para o novo governo do PT, é difícil entender a perspectiva liberal de retirada do Estado de campos da vida da sociedade. O que é classificado como “desmonte” foi, em grande medida, uma redução deliberada da ação governamental para dar maior espaço para os agentes privados, algo que se choca frontalmente com uma ideologia esquerdista, na qual toda realidade é uma construção política. Nela, o Estado deve ocupar todos os espaços onde for possível e não faz sentido ter e não exercer o poder. Essa perspectiva casa-se com outra positivista, bem tradicional no Brasil, na qual a sociedade desenvolve-se dentro de um modelo top down, de um centro iluminado para o restante da sociedade. Agora é possível entender por que Lula também imagina ser seu dever organizar tudo o que puder e orientar até mesmo “os investimentos dos privados”.

A ideia de um governo popular, da base para o topo, só acontece dentro de uma dinâmica que é liderada e coordenada pelo Estado. Ela é, nesse aspecto, apenas falsamente horizontal, porque só há participação dentro dos espaços estatais, onde os atores só podem atuar se, antes, forem reconhecidos como portadores desse direito pelo poder político. O resultado é uma dominância de movimentos de esquerda, com exceção dos foros empresariais, que o governo também traz para espaços monitorados e controlados como o Conselhão, por exemplo.

A perspectiva instalada exigirá, portanto, uma ampliação da ação estatal. Isso pode ser constatado, por exemplo, pelo aumento do número de ministérios. Não se trata meramente de instrumento para acomodar aliados e construir governabilidade (é isso também). Na verdade, para o PT, criar ministério sobre um assunto sempre foi uma maneira de incluí-lo na pauta política, dando-lhe importância e visibilidade. O crescimento de 60% de pastas na Esplanada, assim como o aumento da quantidade de secretarias dentro de cada uma delas, traduz a vontade de abarcar mais áreas.

A ampliação do Estado tem consequência fiscal. Isso significa mais funcionários públicos ativos – a não ser que o governo entre na era da transformação digital -, mais gente contemplada por programas, mais orçamento e, muito possivelmente, mais impostos. Daí o primeiro conflito estrutural do Estado com a sociedade, a busca por recursos e a briga contra os limites fiscais instalados.

Outro conflito contratado é o desmonte de estruturas legais que objetivam isolar áreas estratégicas da economia da influência partidária. Essas proteções tecnocráticas são anteparos de que visam a proteger determinadas áreas da influência político-partidária, considerada previamente nociva pelos seus criadores e considerada importantes pelo mercado. A fala do presidente Lula contra a autonomia do Banco Central, o fim da Lei das Estatais e a mudança da Lei das Agências, que está sendo gestada no Congresso, são todas iniciativas com o objetivo de uma ocupação geográfica maior das estruturas de poder que servem a essa ampliação do Estado e caem como uma luva para intuitos clientelistas de setores tradicionais do establishment brasileiro.

Nesse sentido, a primeira lição para entender o governo Lula é saber que (i) o Estado buscará ampliar seu leque de atuação; (ii) tentará organizar e coordenar todos os foros de formação de opinião pública possíveis; (iii) promoverá uma constante tensão orçamentária; (iv) terá forte discurso popular com ampliação de beneficiários de políticas públicas; (v) privilegiará políticas redistributivas, possivelmente a partir de aumento da arrecadação justificada socialmente e (vi) buscará aumentar a gestão partidária de áreas da administração pública, área em que interesses convergem com setores tradicionais da política brasileira.

Na economia, é de se esperar que recursos estatais sejam disponibilizados para atividades econômicas, além da ação governamental para planejar estratégias de crescimento e alocação de recursos. Para quem acredita que a ação do governo nunca será superior, em termos de eficiência, às decisões dos privados, trata-se de uma má notícia. O passado não abona o PT nessa tarefa e, portanto, se o novo governo acredita que pode fazer um bom trabalho, precisará trabalhar duro para conquistar a confiança dos agentes econômicos.

Para a democracia, por mais que um governo popular soe bem aos ouvidos e tenha uma estética multicolorida, sabe-se desde o trabalho fundamental do sociólogo alemão Robert Michels e sua famosa “A Lei de Ferro das Oligarquias”, que o processo decisório tende a se oligarquizar na medida em que se forma uma casta entre os representantes de segmentos populares que trabalham em torno dos seus próprios interesses, hierarquizando e disciplinando os espaços de participação que lutam para dominar.

 

Leonardo Barreto é cientista político

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  1. Esse presidente age como se estivesse num dos seus países camaradas. É um sem noção, que, pior, consegue carregar tanta gente para sua ideologia deturpada. Onde estão, nesse momento, os famosos intelectuais de esquerda? aqueles artistas que fazem propaganda política e depois somem? Não consigo acreditar que estão realmente concordantes com o vulgo pai dos pobres.

  2. Com a direita no poder, embora com seu grande defeito de falar o que não deve, o Estado Brasileiro sinalizava para reduzir seu poder e controle e estimular a iniciativa privada. Estava dando certo. Na atual gestão, a sinalização é para o Poder e o Povo. Ou seja, sem classe média iremos para debaixo do braço. E pensar que ia dá certo…

  3. O problema maior, a meu ver, é a vocação e o anseio geral em nossa sociedade pela tutela pelo estado. Onde se escreve Ordem e Progresso leia-se Passividade e Dependência.

  4. A iniciativa é boa, mas não vejo como salvar os próximos quatro anos. Se o Alckmin assumisse, talvez pudesse ser um pouquinho menos ruim …

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