AlexandreSoares Silva

O que é uma mulher?

24.06.22

O que é uma mulher? Não sei. Na verdade, sei, porque é óbvio. Minha tia Nice é uma mulher. Meu primo Marcos, o Marquito, é um homem. Por que querem nos deixar confusos? Você começa a se perguntar de qualquer coisa o que é essa coisa e de repente não sabe nada, como Sócrates.

O que é uma mão?”. É isto aqui, ué (mostrando a mão). Mas o perguntador sorri, sabido, e pergunta se ela continua a ser uma mão se for esfrangalhada por um torno mecânico (continua, ué), ou se nascer uma mão na sua barriga (acho que sim, ué), ou se um mutante nascer com uma chaleira no final do braço (acho que não, ué). “O que é uma mão” — que pergunta irritante. Eu sabia até dois segundos atrás, mas agora estou tão confuso que estou tentando digitar com o cotovelo.

Claro, poderia ter falado que mulher é quem tem cromossomos XX. Ou quem tem uma vagina. Mas por favor não me façam pensar na vagina da minha tia Nice. Vai ser um Natal em família muito desconfortável se os meus primos souberem que escrevi uma coluna inteira sobre a vagina da minha tia Nice. Além disso, é desnecessário falar dessas coisas. Eu sei que ela é uma mulher sem precisar de exame de laboratório, do mesmo jeito que saberia que, se o meu primo Marcos aparecesse na minha casa com cílios postiços e uma voz insinuante, ele estaria numa fase meio confusa, sei lá, mas continuaria sendo um homem.

Esse ué que repeti várias vezes, essa vocalização do bom senso perplexo por estar sendo atacado, é exatamente o que o movimento identitário quer destruir. Uma sociedade inteira em que ninguém diga ué. Uma civilização inteira em que as pessoas deixem o bom senso atrofiar como fizemos com as nossas caudas na metade da era Cenozoica.

Falei de Sócrates. Bom, mas Sócrates, ao sair andando por aí perguntando o que é isso, o que é aquilo, e irritando todos os gregos da Tessália ao Peloponeso, realmente queria chegar numa definição racional das coisas. O movimento identitário, ao negar as definições tradicionais do que é uma mulher, quer permanecer na confusão até que fiquemos tão confusos que, ao ver um bodybuilder que colocou bobs no cabelo, a gente encolha os ombros e desista de tentar classificá-lo. É um homem ou uma mulher? Não sei mais, ele colocou bobs no cabelo, isso tornou tudo um mistério irresolvível para os meus sentidos — vou acreditar na resposta que ele mesmo der a essa pergunta, porque uma entidade mística (“identidade de gênero”) está sussurrando no ouvido dele o que ele é, e quem sou eu para desacreditar nas vozes dos espíritos?

Enfim, falo disso porque acabei de ver um documentário chamado What is a Woman?, lançado pelo americano Matt Walsh agora no início de junho. Matt Walsh é um jornalista, podcaster e escritor de alguns livros — entre eles o infantil Johnny, a Morsa, em que um menino brinca de ser morsa colocando duas colheres de madeira na boca, como se fossem as presas, e imediatamente um médico aparece na sua frente com um serrote para cortar os pés dele e colocar barbatanas. O livro é mal-ilustrado e a mensagem é demasiadamente óbvia, mas mesmo assim dá vontade de subir num helicóptero e distribuir milhares de cópias lá de cima, só pra ver a comoção de uma cidade inteira.

No documentário, Walsh entrevista pediatras, professores, filósofos, transgêneros, deputados, atletas etc. Pergunta para todos o que é uma mulher. Ninguém consegue responder. Nem as feministas no meio de um protesto feminista conseguem responder. Outros ficam irritados com a pergunta. Um professor universitário, ao ser perguntado o que é uma mulher, pergunta para Walsh por que ele quer saber isso. “Para saber a realidade”, diz Walsh. E o professor responde: “Me sinto muito desconfortável com esse termo, e se você não parar de falar em realidade essa entrevista vai acabar agora.”

Alguns outros não ficam irritados, usam um tom paternal de quem está ensinando o óbvio aos ignorantes que não foram para a faculdade nos últimos dois anos. “Agora sabemos que ‘mulher’ é uma construção social”. Esse “agora sabemos” é o lema deles. “Antigamente achávamos que A, mas agora sabemos que B”. E o que é B, que agora sabemos? É algo que lhes disseram num curso. São as criaturas menos socráticas do mundo, porque nunca põem em dúvida o que ouviram num curso.

Estava errado quando disse, lá para cima, que eles querem destruir o bom senso. O que eles querem é a criação de um outro bom senso. Um bom senso paralelo, que com o tempo vai se tornar o único que existe.

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