Danilo Verpa/FolhapressJair Bolsonaro, na manifestação de Sete de Setembro de 2021: neste ano, "defesa da liberdade de expressão" é o mote para uma demonstração de força nas ruas

Como o STF fortalece Bolsonaro

A duríssima sentença imposta ao deputado Daniel Silveira pelo STF deu ao bolsonarismo a munição que o movimento buscava, para ir às ruas em favor da liberdade de expressão - e contra as instituições
28.04.22

“Você não precisa gostar do Bolsonaro. Você precisa gostar da sua liberdade, porque é ela que está em jogo.” Entre tantas mensagens que inundaram as redes sociais após a condenação do deputado Daniel Silveira pelo Supremo Tribunal Federal, na semana passada, essa talvez seja a que melhor exprime a retórica com a qual a militância bolsonarista tem explorado o caso para colher dividendos eleitorais. Oito meses após a fatídica manifestação do Sete de Setembro, que levou a crise institucional brasileira a um de seus picos, o presidente Jair Bolsonaro pretende arrastar novamente uma multidão às ruas, sob o pretexto da defesa da liberdade de expressão. A duríssima sentença imposta ao parlamentar que ameaçou os ministros do STF deu ao bolsonarismo a munição que o movimento buscava, às vésperas da campanha eleitoral. Neste domingo, o palco será montado em mais de 70 cidades pelo país e uma série de caravanas foram organizadas de última hora para tentar preencher o maior número de quarteirões da Avenida Paulista, em São Paulo, símbolo dos protestos políticos nos últimos anos. Bolsonaro ainda mantém suspense sobre sua participação nos atos. O fato de Lula, seu adversário petista, ter voltado a fazer nesta semana sua defesa decrépita da regulação da mídia (leia-se controle estatal dos meios de comunicação) torna a oportunidade ainda mais extraordinária. 

Os ataques bolsonaristas ao Supremo precedem a eleição do capitão reformado ao Planalto. Em outubro de 2018, por exemplo, viralizou nas redes um vídeo no qual o deputado Eduardo Bolsonaro, filho 03 do presidente, disse que bastava um cabo e um soldado para “fechar o STF”. Já no decorrer do governo, o então ministro da Educação, Abraham Weintraub, classificou todos os magistrados como “vagabundos” que mereciam ir para a cadeia, durante a famosa reunião ministerial, em abril de 2020, cujo vídeo foi divulgado a mando do então ministro Celso de Mello, no âmbito do inquérito sobre a interferência política na PF, aberto depois da denúncia de Sergio Moro. O próprio Bolsonaro jamais economizou adjetivos nas críticas feitas em eventos públicos e no cercadinho formado por apoiadores que o bajulam diariamente na porta do Palácio da Alvorada. No Sete de Setembro de 2021, sobre o mesmo caminhão de som gigante que deve estar na Paulista neste fim de semana, o presidente não apenas disse que deixaria de cumprir sentenças assinadas por Alexandre de Moraes, como ainda o ofendeu: “Sai Alexandre de Moraes. Deixa de ser canalha. Deixa de oprimir o povo brasileiro, deixa de censurar o seu povo.”  O insulto quase deu início a um processo de impeachment. Bolsonaro teve de retroceder, com aquela carta redigida pelo ex-presidente Michel Temer.

Agora, o cenário é outro. Se antes da condenação de Daniel Silveira, a cada ataque de Bolsonaro o STF recebia um sinal de apoio da cúpula do Congresso, depois da sentença proferida por 10 a 1 — apenas o ministro Kassio Marques votou contra —, o presidente da Câmara, Arthur Lira, contestou publicamente a cassação do deputado imposta pelo STF. O cacique do Centrão defende que cabe ao Legislativo decidir sobre a perda de mandato parlamentar. O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, endossou a tese. O quadro se complicou ainda mais para o tribunal com a declaração do ministro Luís Roberto Barroso de que as Forças Armadas estão sendo orientadas a atacar o sistema eleitoral. Barroso é o segundo alvo preferido de Bolsonaro, pela defesa enfática das urnas eletrônicas que fez à frente do Tribunal Superior Eleitoral. Sua menção às Forças Armadas levou o ministro da Defesa, general Paulo Sérgio Nogueira, a dizer que a afirmação é “irresponsável” e uma “ofensa grave” às instituições militares. Decano do STF e dono dos instintos políticos mais aguçados da corte, o ministro Gilmar Mendes passou a defender uma urgente reabertura de diálogo com o Planalto e com o Congresso.

Marcos Oliveira/Agência SenadoMarcos Oliveira/Agência SenadoAlexandre de Moraes: “A Constituição não garante a liberdade de expressão como escudo protetivo para a prática de atividades ilícitas”
A pena de 8 anos e 9 meses de prisão aplicada a Daniel Silveira deu azo ao discurso de que os aliados do Planalto são perseguidos por um Supremo “liberticida” que, no entanto, se mostra tolerante com outros crimes graves, como corrupção e lavagem de dinheiro, cometidos por opositores. Não faltaram comparações com as penas aplicadas pelo mesmo Supremo a dirigentes do PT condenados no mensalão, caso de José Dirceu — 7 anos e 11 meses —, e com as decisões da corte que livraram da cadeia petistas como o ex-presidente Lula, em 2019. “O que está mobilizando as pessoas é a inversão de valores nas decisões tomadas pelos ministros do Supremo Tribunal Federal. Estamos vendo inúmeros bandidos que cometeram crimes graves contra a nação serem soltos e terem suas penas minimizadas, enquanto um deputado, no seu direito de livre expressão, mesmo que de maneira grosseira e indelicada, é condenado a mais de oito anos de prisão por um crime de opinião”, disse a Crusoé o coordenador do movimento Nas Ruas, Tomé Abduch, bolsonarista de quatro costados, que passou a organizar um grande ato na Avenida Paulista logo após Bolsonaro publicar o indulto a Daniel Silveira.

Crítico da atuação do STF desde a abertura do chamado inquérito das fake news, em 2019, o ex-ministro Marco Aurélio Mello disse a Crusoé que Bolsonaro “nada a braçadas” nas crises com o Judiciário e reconheceu que a corte tem dado munição ao bolsonarismo. “O Supremo tem alimentado o discurso do presidente, não há a menor dúvida. Parece até massa de pão. Quanto mais bate, mais cresce”, afirmou Marco Aurélio, para quem o caso de Daniel Silveira deveria ter sido analisado pela Câmara em um processo por quebra de decoro parlamentar. “O que começa errado tende a dar errado e repercutir de forma negativa”. Segundo o jornal O Globo, sondagens feitas pela campanha de Bolsonaro à reeleição constataram que o embate com o STF foi positivo para a imagem do presidente. Parlamentares aliados do governo já deixaram claro a Crusoé que vão explorar a crise, dizendo que “enquanto o Supremo solta um monte de bandidos, Bolsonaro teve a coragem de peitar os ministros para defender um inocente”. Esta será também a tônica das manifestações bolsonaristas no feriado do Dia do Trabalhador, data historicamente celebrada pela esquerda. Até a compra do Twitter pelo bilionário Elon Musk, notório crítico da política de moderação da rede social, tem sido explorada como prova de que Bolsonaro está do lado da razão nessa batalha — desde o anúncio do negócio, na segunda, 25, Bolsonaro já ganhou cerca de 100 mil seguidores na plataforma. 

Com o caso Daniel Silveira, o bolsonarismo conquistou ainda mais musculatura para encobrir, perante o eleitor médio, as inúmeras contradições no seu discurso em defesa da liberdade de expressão. Não apenas Bolsonaro, mas também uma expressiva parcela de seus seguidores mais fanáticos, defendem abertamente os piores atos da ditadura militar, que além de ter prendido e torturado presos políticos, também submeteu o país à censura prévia da imprensa e de obras de arte, por quase duas décadas. Como ocorreu no Sete de Setembro, é bem provável que haja neste domingo na Avenida Paulista cartazes defendendo a liberdade de expressão ao lado de faixas pedindo a volta do AI-5, ato que recrudesceu o regime autoritário, em 1968. Para esses apoiadores, é o ministro Alexandre de Moraes quem se encaixa no figurino de “ditador”, ao comandar inquéritos abertos de ofício pela corte contra os arroubos da militância bolsonarista.

Em seu voto, o ministro do STF rechaçou um ponto central usado pelos bolsonaristas na defesa de Daniel Silveira, que é a imunidade parlamentar garantida pela Constituição. Como já havia dito quando determinou a prisão do deputado, em fevereiro do ano passado, logo após ele divulgar um vídeo xingando e ameaçando os magistrados, Moraes afirmou que a “Constituição não garante a liberdade de expressão como escudo protetivo para a prática de atividades ilícitas, para discurso de ódio, discurso contra a democracia e discurso contra as instituições”. Em seguida, o ministro listou “quatro circunstâncias judiciais desfavoráveis ao réu”, para justificar a elevada dosimetria da pena imposta ao parlamentar, tão criticada pelos bolsonaristas e também por quem não é partidário do presidente, mas vê com preocupação o protagonismo político do STF: culpabilidade, conduta social, circunstâncias do crime e a motivação para a prática delituosa. “O réu atacou as instituições e a própria democracia no intuito de obter maior visibilidade eleitoral e seguidores nas redes sociais”, completou Moraes.

Nenhum dos ministros contava que Bolsonaro viria no dia seguinte à condenação com um indulto a Daniel Silveira, comemorado como um “xeque-mate” no Supremo. Agora, os magistrados tentam serenar os ânimos e calcular os danos do novo bombardeio na já desgastada imagem da corte. A ministra Rosa Weber decidiu levar para o plenário, ainda sem data para julgamento, a ação movida por partidos de oposição contra o perdão concedido por Bolsonaro ao aliado. Já Alexandre de Moraes limitou-se a publicar um despacho na terça, 26, ressaltando que, mesmo com o indulto, Silveira segue inelegível por causa da condenação. Enquanto isso, Jair Bolsonaro joga para o eleitorado, com muito cálculo. Na quarta, 27, o presidente promoveu um “ato cívico pela liberdade de expressão” no Palácio do Planalto, no qual o deputado condenado pelo STF posou para fotos com o texto da “graça constitucional“, nome jurídico para o decreto presidencial que o livrou o parlamentar da prisão, emoldurado num quadro. No mesmo dia, Daniel Silveira, teoricamente cassado pela Justiça e sem tornozeleira que estaria obrigado a usar, foi indicado para cinco comissões da Câmara. Entre elas, a de Constituição e Justiça. 

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