Bruno Tadashi/Flickr

A sala de aula depois do caos

30.12.21
MIGUEL SANCHES NETO

Apesar das novas variantes da Covid-19 que possam se propagar, o ano de 2022 ficará marcado como o início de uma nova era, a era pós-pandêmica, em que conviveremos com o vírus em uma situação moderada de risco, ainda cheios de cuidados, mas com ansiedade de fazer coisas que nos foram impedidas. As escolas e as universidades retomarão a modalidade presencial, mesmo com um grupo, o das crianças, ainda em processo de vacinação.

Assim, o principal dispositivo de segurança será o alerta, para isolamento e encaminhamento dos suspeitos para casa ou para as unidades de saúde. Além do uso de máscara em espaços escolares, que deverão permanecer arejados, e da higienização das mãos, escolas e universidades terão que contar com uma equipe permanente de monitoramento de casos e de acompanhamento da saúde mental dos indivíduos, para o retorno de todos com segurança psicológica.

Como somos um país com distâncias sociais imensas, a pandemia afetou de forma muito distinta a população. Da classe média para cima, o maior efeito sobre os estudantes foi o isolamento digital, que trancafiou crianças e jovens em seus quartos, obrigando-os a uma vida online paralela, antecipando assim a coabitação em mundos artificiais que caracteriza a realidade do metaverso, apresentada recentemente por Mark Zuckerberg. Esses seres interagiram como avatares no período da pandemia, que funcionou como um pré-estágio dessa nova fase da internet.

Favorecido por boa conectividade e por espaços próprios em casa, esse grupo aprofundou a intimidade com os novos recursos, dedicando a maior parte de seu tempo, mesmo aquela que era para ser escolar, ao entretenimento. O horário de ensino e o horário de lazer se sobrepuseram, fortalecendo as tarefas simultâneas e uma autossuficiência para buscar continuamente a informação e o lazer. Com a volta ao regime presencial, os alunos tendem a reproduzir o mesmo grau de interatividade digital, criando desafios para os professores, de quem se exigirão estratégias condizentes de ensino mesmo com a turma em sala.

Se a tecnologia aproximou os que estavam distantes no isolamento, ela servirá, no retorno, para unir virtualmente os que estão próximos, pois a lógica de relacionamento por aparelhos se instalou nessa faixa econômica. Ao próprio professor restará um esforço (intelectual e financeiro) para acompanhar tais novidades, incorporando-as à sua atuação. Nas redes privadas de ensino, haverá uma tendência para contratar os educadores mais jovens, com uma intimidade maior com essa nova linguagem, em prejuízo de quem não se adaptou a ela por incompatibilidade principalmente geracional.

No extremo oposto, onde se localiza a maioria da população brasileira, a pandemia fortaleceu o empilhamento humano em lares que não dispõem de espaços individuais. Além das crianças e jovens que não frequentaram a escola no período, houve ainda o aumento do número de adultos em casa, por perda de seus postos de trabalhos, piorando as tensões domésticas pela ociosidade e pela crise financeira. As populações vulneráveis, mesmo com algum acesso à internet, tiveram a rotina mais modificada pela pandemia. E o fato de não haver aulas presenciais afetou essas estruturas familiares, diminuindo inclusive o direito à alimentação, facultado aos alunos pelas escolas e universidades públicas. Como fruto do adensamento humano nas moradias, houve também uma alteração crescente dos índices de violência doméstica, como demonstram estatísticas de órgãos especializados.

Esse outro estudante não pôde acompanhar de forma satisfatória todos os conteúdos escolares, mesmo recebendo-os em casa e tendo despendido tempo para isso. Por ausência ou fragilidade de acesso às tecnologias, pela falta de espaços individualizados, pela dificuldade de acompanhamento familiar dos estudos, ele teve sua formação comprometida. Um reflexo disso é o alto índice de não comparecimento ao Enem e a vestibulares, pois uma parte significativa dos estudantes não contou com bagagem suficiente para entrar em uma disputa por vagas. Consequentemente, houve uma alteração para cima das médias, pois o grupo com maiores recursos pôde completar sua formação de maneira satisfatória.

o professor das redes públicas, em muitos casos, enfrentou dificuldades de preparo de suas atividades, até porque muitos não contam com internet eficiente e com equipamentos adequados, não tendo, algumas vezes, nem espaço em casa para gravar as aulas – ou tendo de dar aula na escola para grupos pequenos de forma presencial e, em paralelo, para quem os acompanhava remotamente. Essa estratégia dupla, chamada de híbrida, foi altamente desgastante para o professor, que termina o ano de 2021 esgotado.

O quadro resumido aqui coloca alguns desafios para o ano de 2022. Ocorreu um desnível grande entre alunos de um mesmo estágio de formação, em razão da falta de equipamentos e de assessoria didática, ou mesmo pelas diferenças de autonomia para o estudo. Algo que se fará necessário talvez seja institucionalizar provas de proficiência, que permitam que estudantes que já dominam conteúdos avançados possam ir para séries adiantadas. Haverá, cada vez mais, pressão para estimular a autoaprendizagem, que se intensificou com o contexto pandêmico.

No sentido inverso, e o que será mais comum, haverá a necessidade de reforços para aqueles que tiveram problemas de descontinuidade. A escola precisará dar uma atenção especial a quem deixou de obter os conceitos mínimos para avançar nos próximos estágios. O problema que se coloca é de caráter isonômico – permitir que se tenha uma retomada do que se perdeu no período, mesclando soluções presenciais e remotas sob orientação, ao mesmo tempo que se frequenta a nova série. Para isso, serão cruciais um número maior de professores e horários alternativos para esse processo de nivelamento, sob pena de ocorrer uma evasão em massa.

Nas escolas públicas, o grande investimento deverá ser no sentido de promover a inclusão digital plena, com espaços destinados à aprendizagem por plataformas. Sem um investimento massificado em equipamentos e internet, corre-se o risco de excluir das oportunidades de estudo uma parcela da população estudantil. Na era pós-pandêmica, não há mais como pensar o ensino sem as ferramentas digitais. Um programa nacional de acesso à internet de forma gratuita ou subsidiada talvez seja a mais relevante ação educacional que possa ser proposta como política pública na área.

Para o pleno uso dessas potencialidades, será determinante uma revisão das metodologias didáticas, que precisarão ser ativas, criando a emancipação de aprendizagem nos alunos e valorizando profissionalmente o professor como tutor, peça-chave de todo o processo.

Não são poucos nem pequenos os desafios que a pandemia criou para a educação em um país onde persistem tantas desigualdades. O primeiro movimento para uma democratização do ensino será, com certeza, o investimento no acesso à internet, necessidade que coincide com a chegada do 5G ao Brasil.

Miguel Sanches Neto é escritor. Escreveu, entre outros, os romances A Segunda Pátria (Intrínseca) e A Máquina de Madeira (Companhia das Letras). Doutor em Letras pela Unicamp, é reitor da Universidade Estadual de Ponta Grossa, no Paraná.

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