Escracho na base
Na última quarta-feira, 30, na cerimônia de filiação do presidente Jair Bolsonaro ao PL, o chefão do partido, Valdemar Costa Neto, circulou pelo local da festa escoltado por um de seus mais fiéis escudeiros, o deputado federal Josimar de Maranhãozinho (assista aqui). O sorridente Maranhãozinho, que postou a cena em seu Instagram com uma música épica ao fundo, seria alvo no dia seguinte, pela segunda vez em menos de um ano, de uma operação da Polícia Federal destinada a coletar provas de sua participação em um azeitado esquema de desvio de milhões de reais em verbas federais destinadas a obras e à área de saúde. Aliado de primeira hora do Palácio do Planalto, o deputado comanda o diretório maranhense do novo partido de Bolsonaro. Ele se gaba de ser próximo do presidente da República, com quem esteve pessoalmente algumas vezes desde que assumiu uma vaga na Câmara, no início de 2019.
Ex-prefeito de Maranhãozinho, o município minúsculo de menos de 20 mil habitantes encravado no norte do Maranhão que lhe empresta o nome, Josimar tornou-se um fenômeno da política no estado. Após dois mandatos de deputado estadual, foi eleito pela primeira vez para uma cadeira no Congresso Nacional com votação recorde e conseguiu costurar uma rede de apoio político comparável àquela que, em outros tempos, serviu a outro coronel maranhense, José Sarney. Hoje, Josimar de Maranhãozinho controla pelo menos seis dezenas de prefeituras, tem a mulher como deputada na Assembleia Legislativa e exerce forte influência sobre a bancada federal do estado. Já se lançou candidato ao governo do Maranhão nas eleições do ano que vem – um posto que ele sonha conquistar com a presença do agora correligionário Jair Bolsonaro em seu palanque.
As investigações começaram ainda no primeiro semestre do ano passado e, desde então, correm sob absoluto sigilo. Crusoé teve acesso, com exclusividade, à parte mais sensível da apuração, mantida a sete chaves até agora pelos investigadores: imagens nas quais o deputado aliado do presidente da República aparece manuseando generosos maços de dinheiro que, segundo a Polícia Federal, são produto direto do esquema de corrupção envolvendo as emendas parlamentares. O flagrante foi feito em outubro do ano passado, no interior do escritório político do deputado, em um prédio comercial de São Luís, a capital do Maranhão. É difícil compreender as razões pelas quais, com imagens tão acachapantes, nenhuma medida mais enérgica, para além das ações de busca e apreensão, tenha sido adotada até o momento – a despeito das provas robustas, o deputado não apenas segue no mandato como tem circulado livremente pelas altas rodas do poder em Brasília.
Os bastidores da apuração remetem a um thriller policial. Quando já haviam reunido uma série de indícios de que os recursos das emendas estavam sendo escancaradamente desviados, os investigadores conseguiram que o ministro Ricardo Lewandowski, um dos relatores do caso no Supremo, autorizasse uma “ação controlada” para acompanhar o caminho do dinheiro. Primeiro, eles monitoraram os passos de um grupo de pessoas ligadas ao deputado que, conforme indicavam relatórios de inteligência financeira produzidos pelo Coaf, eram as responsáveis por sacar, em espécie, generosas quantias das contas das empresas participantes do esquema. Qual não foi a surpresa quando descobriram que, quase sempre, depois de efetuar os saques de maneira fracionada em uma agência do Banco do Brasil de São Luís, os portadores do dinheiro seguiam diretamente para o escritório político de Josimar de Maranhãozinho, carregando os maços de reais em bolsas e mochilas.
Não há, até hoje, nenhuma prova mais contundente da corrupção envolvendo a farra de emendas por meio da qual o governo de Jair Bolsonaro tem comprado apoio político no Congresso – uma parte significativa dessa farra funciona com os bilionários recursos do chamado “orçamento paralelo”, em que verbas são distribuídas sem critério algum, e sem a devida transparência, para os parlamentares que o Palácio do Planalto quer agradar.
O passo seguinte do thriller é ainda mais interessante. Também autorizados pelo Supremo, os policiais instalaram uma câmera e equipamentos de escuta dentro do escritório de Josimar de Maranhãozinho. A partir de então eles descobriram que o lugar, usado pelo deputado para reuniões políticas e outros despachos na capital maranhense, era também um bunker usado para guardar o dinheiro desviado: gravaram o entra-e-sai dos operadores do parlamentar que iam deixar as bolsas recheadas de reais, funcionários contando os carregamentos que chegavam e, ainda, o próprio deputado com as mãos cheias de dinheiro.
As empresas eram contratadas pelas prefeituras para fornecer medicamentos e produtos hospitalares. Em plena pandemia, parte dos contratos foi firmada para, ao menos no papel, auxiliar nas medidas de combate ao coronavírus, o que torna a trama ainda mais escandalosa – sim, a roubalheira corria solta enquanto milhares de pessoas morriam de Covid-19. A outra ponta do esquema vinha logo na sequência. Logo após as prefeituras fazerem os pagamentos ao pool de empresas, ocorriam os saques de vultosas quantias na boca do caixa, feitos por pessoas ligadas diretamente ao deputado, que, em seguida, deixavam o dinheiro no escritório político dele. Tudo documentado em fotos e vídeos, passo a passo, desde as visitas à agência bancária para apanhar o dinheiro até, finalmente, as entregas no bunker de Maranhãozinho. De acordo com a Polícia Federal, apenas duas das empresas ligadas ao deputado que receberam dinheiro proveniente das emendas enviadas por ele, a Medhosp e a Atos Engenharia, fizeram saques que somam nada menos que 5,5 milhões de reais – mais de um terço do valor total das emendas.
O sucesso do hoje deputado federal arrastou outras pessoas de seu círculo pessoal para a política. A mulher dele, Maria Deusdete Cunha, conhecida pelo apelido de Detinha, elegeu-se deputada estadual. Sua irmã, Josenilda Cunha, tornou-se prefeita de Zé Doca, um dos vários municípios para os quais o parlamentar envia as verbas que, em seguida, são desviadas. Pelas mãos de Josimar, até o ex-motorista dele virou candidato, com sucesso: José Auricélio de Moraes hoje ocupa a cadeira de prefeito de Maranhãozinho, a pequena cidade onde o deputado iniciou sua trajetória política. E assim o ex-leiteiro foi construindo a rede de municípios que servem ao esquema – quando não tem parentes e amigos no comando, Josimar de Maranhãozinho conta com outros aliados que lhe devem o mandato porque tiveram a eleição financiada por ele. Em 2018, o deputado chegou a emplacar uma sobrinha como candidata a vice-prefeita de São Luís. A chapa, porém, acabou derrotada no segundo turno.
No monitoramento que os policiais federais fizeram das reuniões realizadas por Josimar de Maranhãozinho no escritório, surgiram fortes evidências de que ele usava o dinheiro do esquema para bancar campanhas de aliados em diversas regiões do Maranhão, desde a capital até o interior profundo. As gravações foram feitas em outubro do ano passado, semanas antes das eleições municipais, adiadas por causa da pandemia. O deputado trata de estratégias de campanha e, especialmente, da distribuição de dinheiro para tentar garantir a vitória de seus parceiros. Em uma reunião com a equipe de Duarte Júnior, o candidato a prefeito da capital que tinha sua sobrinha como vice, o parlamentar responde o seguinte ao ser indagado sobre o pagamento de despesas com o marketing da campanha: “Agora eu tenho duzentos. Aí eu posso viabilizar para ver se consigo sacar (…) Não dá para usar nota aí, então. Tem que pagar por fora mesmo”.
Os registros mostram uma romaria de gente ligada à eleição indo ao escritório para buscar dinheiro para bancar campanhas no estado. Maranhãozinho fazia questão de acompanhar as chances de cada um – a “busca exploratória” feita pelos agentes localizou relatórios de pesquisas de opinião por meio das quais ele monitorava as chances de cada um dos aliados. A cena em que o deputado aparece com os rechonchudos maços de dinheiro nas mãos foi captada pelos policiais no início da noite de 27 de outubro de 2020.
No Supremo, Josimar de Maranhãozinho é investigado por pelo menos quatro crimes: peculato, lavagem de dinheiro, organização criminosa e fraude a licitação. A apuração sobre o caminho dos 15 milhões de emendas destinadas no ano passado pelo parlamentar à área da saúde é apenas uma amostra do que pode ser, de fato, o esquema: estima-se que, nos últimos anos, somando as suas próprias emendas com as de outros parlamentares que toparam participar, Maranhãozinho operou para despejar, no mínimo, outros 100 milhões de reais em sua máquina de fazer dinheiro vivo. O papelório apreendido no escritório do deputado indica que o “lucro” das operações costumava ser repartido com parceiros, inclusive de fora do Maranhão: há registros de que ele autorizou entregas de dinheiro vivo em Brasília e em São Paulo, por exemplo. Uma das planilhas registra que na capital paulista, de uma só tacada, foi feito um “delivery” de 1,5 milhão de reais.
Procurado por Crusoé, o gabinete de Josimar de Maranhãozinho criticou a investigação da Polícia Federal. Sobre o dinheiro, a assessoria disse que os valores em espécie guardados no escritório constavam da declaração de imposto de renda do deputado – uma tática manjada, como se sabe. Espera-se que, mais de um ano depois da obtenção de provas tão eloquentes quanto as imagens da dinheirama, a investigação tocada pela PF sob o crivo do Supremo finalmente saia do secretismo e alcance resultados práticos, para além das buscas. E que o próprio Congresso Nacional dê uma resposta. Nos dias atuais está bem difícil, mas é preciso impor limites ao escracho.
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